Exatos 125 anos atrás, o Brasil Império, sob o comando de uma princesa interina, passava por uma ebulição social nunca vista nos mais de três séculos de história documentada desde o descobrimento, em 1500. No início de 1888, começavam a se desenhar os acontecimentos que culminariam em um dos mais importantes marcos legais do país: a Lei Áurea. Para recontar esse momento emblemático, o Estado de Minas convida você, caro leitor, a uma viagem no tempo. Até terça-feira, a série de reportagens Abolição, 125 anos volta ao Rio de Janeiro da segunda metade do século 19, província que abrigava o poder político da época, para contar como se deu a extinção da escravidão no Brasil em seus quatro dias decisivos. As reportagens mostrarão os embates entre deputados e senadores, a pressão do governo imperial e o quanto as relações de poder à época guardam semelhanças inegáveis com os tempos atuais. Para isso, a cada dia, questões contemporâneas relacionadas à desigualdade racial brasileira serão trazidas à tona. Uma boa viagem!
Milhares de lírios e rosas cobriram ontem a Rua Primeiro de Março. Nas imediações da Câmara dos Deputados, no Centro do Rio de Janeiro, o clima de comoção tomou conta dos cerca de 5 mil manifestantes que acompanharam a votação do projeto de lei que extingue a escravidão no país. Depois de três dias de discursos ácidos e de provocações mútuas dos parlamentares, a proposta, enviada à Assembleia Nacional pela princesa imperial regente, Isabel, foi aprovada por 83 votos a favor e nove contra. Única nação do mundo ocidental que mantém o regime de servidão, o Brasil nunca esteve tão próximo de extirpar o que vem sendo chamado de “cancro social” pelas campanhas de emancipação. Para o rompimento total dos grilhões, contudo, é necessária ainda a chancela do Senado, que começará a examinar o texto hoje mesmo.
Apesar do temor em torno de um retrocesso no Senado, conhecido pelo conservadorismo em suas posições, a festa nas ruas se estendeu por horas. Com flores e aplausos, homens e mulheres descalços, evidenciando a condição de criados — já que o uso de sapatos é permitido apenas às pessoas livres nos dias atuais —, festejaram ao lado dos milhares de brancos que apoiam a abolição. Antes mesmo de o resultado da votação ser anunciado, era grande o frisson no plenário da Câmara, cujas galerias ficaram lotadas de gente atenta aos movimentos dos parlamentares. Palmas e gritos de “Apoiado!” chegaram a irritar o deputado Andrade Figueira, do Partido Conservador, ferrenho defensor da manutenção da escravidão. “A invasão de pessoas estranhas converte a augusta majestade do recinto em circo de cavalinhos”, reclamou.
Dono de uma postura radical, Figueira protagonizou, na sessão de terça-feira — quando o projeto começou a ser analisado em plenário —, um dos embates mais tensos dos últimos dias, ao discutir com o deputado Joaquim Nabuco, do Partido Liberal em Pernambuco, sobre o cumprimento do Regimento Interno da Casa. Ao questionar a celeridade, medida em minutos, com que a comissão especial criada para analisar o projeto apresentou o parecer, Figueira disparou: “Quaisquer que sejam as impaciências para converter em lei a proposta do governo é preciso colocar, acima de tudo, a legalidade dos atos do parlamento”, disse o deputado do Rio de Janeiro. A queixa foi em vão. Por maioria, a Câmara entendeu que o prazo de 24 horas é necessário apenas para os colegiados ordinários, e não para uma comissão especial, caso em questão. O primeiro dia de debates terminou, entretanto, sem definição clara do resultado final.
Anteontem, os deputados retomaram as discussões. O ministro da Agricultura, Rodrigo Silva, emissor formal da proposta que a Coroa enviou ao parlamento, abriu os trabalhos da Câmara com um discurso contundente em defesa do projeto. Ele citou a Lei dos Sexagenários, em vigor há menos de três anos, que concede liberdade a escravos idosos, como um prelúdio da libertação total. Diante das sugestões, por vezes discreta, de modificação do texto para postergar por alguns anos a abolição, o deputado Araújo Góes se apressou em apresentar uma emenda à redação do projeto deixando claro que a lei vigoraria desde a data da sanção da princesa regente.
Nesse momento, o deputado Spinola Zama, da Bahia, e defensor da abolição, requereu votação nominal da proposta, para que os nomes ficassem gravados nos anais da Casa. O dia terminou com o placar de 83 votos favoráveis e nove contrários, selando a aprovação do projeto em segundo turno. A terceira e última discussão, travada ontem, foi marcada por pronunciamentos conformistas, por parte dos que já se viam derrotados no debate. Por entendimento do plenário, a proposta entrou na terceira e última fase de apreciação sem que fosse necessário aguardar a impressão do projeto, que tem apenas dois artigos. Sem debate, foi aprovado e remetido ao Senado.
Visivelmente emocionado, Nabuco pediu a palavra para mandar um recado aos colegas de parlamento. “Vamos esperar da sabedoria, da generosidade, do patriotismo do Senado que ele — onde, infelizmente, não existe o encerramento das discussões — não impeça a passagem de uma lei como esta.” O deputado, que se tornou uma das vozes mais eloquentes em favor da abolição neste século, arrematou o discurso, sob gritos de “Apoiado!”, festejando a quase unanimidade na aprovação do projeto. “Não há vencidos nem vencedores nesta questão, são ambos os partidos políticos unidos que se abraçam neste momento solene de reconstituição nacional”, disse Nabuco.