Em diferentes países europeus e agora, como sugerem os protestos de rua, também no Brasil, os partidos políticos, canal de representação nas democracias, são rejeitados para a intermediação das demandas dos cidadãos dirigidas aos governos municipal, estadual e federal. O alto grau de descontentamento com as legendas se explica porque os partidos políticos, em geral, voltam todas as suas discussões para a sua permanência no poder ou para as estratégias para tomar o poder, afirma a cientista política Letícia Ruiz, professora da Universidad Complutense de Madrid (Espanha) e autora de vários livros, entre eles Partidos e coerência – Parlamentos na América Latina. “O debate interno não está dirigido para os temas que afetam a vida da população. Essa incapacidade se traduz, nos protestos, com o rechaço das agremiações para a representação de sua pauta de reivindicações”, considera a cientista política.
A impermeabilidade que as agremiações partidárias têm demonstrado, inclusive para renovar os seus quadros políticos e mobilizar os segmentos de jovens, traz um grave problema para o futuro da representação tal qual ela está posta hoje nas democracias contemporâneas. “Se esses segmentos mais jovens no Brasil, na Espanha e em outros países se socializam com a ideia de que o Estado está separado dos partidos políticos, em 40 anos, as legendas serão algo inútil”, afirma Letícia Ruiz.
Existem diferentes maneiras de se vincular aos partidos políticos. Pela teorias tradicionais, a vinculação seria a programática, ideológica. “Mas hoje há cidadãos que se relacionam com as legendas de forma personalista ou clientelística”, afirma. “E, entre aqueles que mantêm vinculação programática com os partidos, creio que a carga ideológica vai diminuindo, pois muitas questões entre a esquerda e a direita na Europa acabaram desaparecendo, por exemplo em relação às políticas econômicas”, diz a cientista política, acrescentando que a direita conquistou a primazia de ditar as opções de política econômica.
Na avaliação de Letícia, um modelo provável para a relação entre cidadãos e partidos políticos é o de que, cada vez mais, ela se paute a partir das propostas para cada tema determinado. Ou seja, cada vez menos “ideológicos”, os cidadãos pragmáticos elencariam as suas preferências em cada contexto, segundo as prioridades de sua agenda e as posições das agremiações nesses temas a cada eleição.
Pelo momento, os movimentos nas ruas, que dirigem os seus pleitos diretamente ao sistema político, na avaliação da cientista, acabam com o monopólio da representação partidária. “Mas de forma alguma os movimentos nas ruas e os partidos políticos são canais para veicular as demandas que se excluem. Quanto mais canais disponíveis houver para a representação dos cidadãos, maior a probabilidade de que os seus pleitos sejam ouvidos e postos em prática”, diz ela. “Essa efervescência social pode nos levar a um cenário em que há a possibilidade de os movimentos nas ruas ditarem a agenda politicamente, contrariamente ao que se verificou até aqui, com a predominância dos meios de comunicação para essa tarefa”, afirma Letícia.
‘INDIGNADOS’
Ao comparar os protestos de rua no Brasil, organizados nas redes sociais, com os movimentos sociais de maio de 2011 na Espanha, dos chamados los indignados, Letícia Ruiz considera os diferentes contextos. “Na Europa vivemos um momento de efervescência social muito forte, mas o continente está claramente atravessando uma situação de crise econômica”, assinala, referindo-se ao fato de o Estado de bem-estar social dar mostras se não de seu esgotamento, da sua necessidade de ser revisto. “A crise econômica é, portanto, dinamizadora desse movimento, que é alimentada pela percepção da má gestão da classe política”, avalia Letícia. No caso brasileiro, contudo, não há uma crise econômica, em que pese exista um crescimento econômico menor do que se esperava.
Além disso, os dois movimentos têm pautas difusas, mas na Espanha ele era mais dirigido contra o sistema capitalista. “Um dos motores das demandas na Espanha era o tema das hipotecas progressivas para a compra de casas. Outra demanda era a exigência de mudanças no sistema eleitoral, de fórmulas alternativas que permitam que mais partidos concorram”, afirma. “No Brasil há um conjunto de pleitos, dando a impressão de que todo o descontentamento com um conjunto de serviços, como a saúde, a educação, e em outras áreas, foi sendo colocado no bojo das reclamações. Isso não ocorreu na Espanha. E, se há um elemento em comum, é o problema da percepção da má gestão da classe política e dos partidos políticos. Temos nesse aspecto um contexto similar”, conclui.