Ernesto Guevara de la Serna era para o Ministério da Guerra brasileiro, em janeiro de 1967, um “marginado” caçado pelos militares que comandavam o país. O argentino, mundialmente conhecido como Che Guevara pelo seu protagonismo na revolução cubana em 1959, foi o foco oito anos mais tarde de um memorando que circulou entre os órgãos de repressão. Até o ano passado o Exército negava a existência de qualquer registro sobre a passagem do revolucionário no país após o golpe militar. Uma consulta formal feita pelo Estado de Minas – obedecendo aos critérios da Lei de Acesso a Informação – obteve a seguinte resposta do Ministério da Defesa: “Não existem nos arquivos do Exército Brasileiro relatórios sobre a estada de Ernesto Che Guevara no Brasil, em 1966”.
Porém, o documento assinado pelo então tenente-coronel Edival Alves Pimenta, da 1ª Região do Exército – ao qual o Estado de Minas teve acesso –, foi repassado aos braços do Serviço Nacional de Informação (SNI) com o carimbo: secreto. Em apenas uma página foram descritos possíveis locais em que o revolucionário teria estado no Brasil, como Duque de Caxias e Petrópolis, no Rio de Janeiro, e no Mato Grosso, fronteira com a Bolívia, país em que Che foi assassinado, em outubro de 1967, enquanto organizava um foco guerrilheiro.
O documento está no arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) na pasta 1.069, que tem um total de oito páginas. São três páginas com a reprodução de um livreto escrito por Che chamado O que é um guerrilheiro?, outra com o memorando distribuído às forças de repressão, entre elas o Dops, e outras três páginas com fotos do revolucionário argentino, além da capa. O documento é intitulado “Pedido de busca número 1 e 2 secreto”.
“Encarando como provavelmente verdadeiros os informes versando sobre a presença do marginado na área do I Ex, esta Agência difunde os informes abaixo”, começa o texto do memorando. Na sequência, detalha os locais e crava: “Consta existir um campo de treinamento de guerrilheiros no município de Petrópolis, próximo à serra de Petrópolis”. O documento relata também que Che foi visto oito meses antes (em junho de 1966) no Mato Grosso, na fronteira com o Brasil. Diz ainda que em Angra dos Reis um marinheiro contou ter visto um casal de argentinos na cidade e que o homem partiu para encontrar Che, enquanto a mulher permaneceu no litoral fluminense.
Entretanto, de acordo com o recém-lançado livro Marighella (Companhia das Letras), escrito por Mário Magalhães, um dos passaportes apreendidos com o argentino em 1967 tinha um carimbo do posto de imigração paulista em 1º de novembro de 1966 e saída dois dias mais tarde. Ou seja, a repressão estava buscando Che nos momentos e nos locais errados. No livro, a informação sobre o itinerário de Che é atribuída a Régis Debray, filósofo e jornalista francês, próximo a Fidel Castro e ao revolucionário argentino, que esteve na Bolívia à época da guerrilha.
“Guevara ingressou no Brasil sem barba, de óculos e com uma careca lustrosa obtida a arrancar fio por fio de cabelo. Portava um passaporte uruguaio em nome de Adolfo Mena Gonzáles, personagem a serviço da Organização dos Estados Americanos. O passageiro disfarçado calou sobre a rota no seu diário de campanha”, escreve Magalhães na página 341 de Marighella.
Para o cientista político, historiador e um dos mais respeitados especialistas sobre política exterior brasileira Moniz Bandeira, não há dúvida sobre a passagem de Che pelo Brasil, principalmente por São Paulo. “Che teria de passar necessariamente pelo Brasil para fazer contatos (Marighela) e entrar na Bolívia. Também consta que ele esteve no Uruguai, com Brizola”, afirma Bandeira. Para o historiador, que escreveu De Martí a Fidel - A revolução cubana e a América Latina (Civilização Brasileira), Che passou para o Brasil a caminho de Montevidéu, onde se encontrou com Leonel Brizola e discutiu a criação de focos guerrilheiros.
A relação entre o governo cubano e as tentativas de guerrilha no Brasil era estreita. No artigo “O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro”, a professora de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) Denise Rollemberg destaca que Cuba teria treinado entre 2 mil e 3 mil guerrilheiros latino-americanos entre 1962 e 1967.
Se nem o Exército é certo sobre quando Che Guevara esteve no Brasil, a suposta presença do revolucionário alimentou uma série de mitos entre os militantes. Alguns chegam até a garantir que ele esteve ensinando táticas de guerrilha no maciço do Caparaó, entre Minas Gerais e Espírito Santo. “Se fosse verdade, quem se encontrou com ele teria o maior orgulho de contar. Teria sido uma glória para quem teve o contato”, afirma o deputado federal e ex-militante Nilmário Miranda (PT), que foi também ministro dos Direitos Humanos.
O autor do livro Caparaó (Boitempo), José Caldas Costa, reforça que não passa de lenda. Ele entrevistou os sobreviventes para escrever o livro, perguntou a todos, mas nenhum confirma os boatos. “Puxava o assunto, mas logo eles diziam que não fazia sentido”, lembra Caldas. A guerrilha começou em outubro de 1966, quando menos de 20 homens tentaram repetir a experiência da Serra Maestra cubana. Porém, sem apoio popular, o foco foi encerrado por milhares de militares. A chegada dos guerrilheiros ao local coincidiu com a ida de Che Guevara para a Bolívia.
O secretário de Educação de Alto Caparaó, Thiago Monteiro, destaca que na cidade não há nenhuma memória que remeta à guerrilha. “O Exército veio para cá e promovia brincadeiras com as crianças, fazia atendimento médico e odontológico e a cidade achava que não tinha ninguém lá em cima (na serra) e adorava a presença dos militares”, destaca Monteiro. Além disso, a maioria da população é evangélica e não apreciava o ateísmo dos comunistas que combatiam na montanha. Mesmo sem agradar os locais, existe um plano, segundo Monteiro, de conseguir reunir material para construir um museu da guerrilha na cidade.