O Brasil já teve seus panteras negras bem antes do movimento surgido nos Estados Unidos, na década de 1960, para garantir os direitos da população negra estadunidense. E sem precisar usar a força. Em setembro de 1931, quando a discriminação e a segregação racial eram práticas normais e aceitáveis no Brasil, um grupo de negros se organizou e criou uma das primeiras organizações de caráter nacional que reivindicava direitos sociais e políticos iguais para todos, independentemente da cor da pele. Era a Frente Negra Brasileira (FNB), que depois se tornou um partido político.
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Abismo social barra a igualdade entre negros e brancos no paísSem uma política de inclusão, negros ficaram à margem da sociedadeBrasil pune mais os pobres e os negros, diz BarbosaMovimento negro foi condenado ao esquecimentoOrganizada e com regras rigorosas impostas aos associados, a FNB acabou se transformando, em outubro de 1934 , no primeiro e praticamente único partido negro brasileiro registrado na Justiça Eleitoral. Ano passado, foi lançado o Partido Nacional Afro Brasileiro (PNAB), ainda sem registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mas a vida partidária da FNB durou pouco. Em novembro de 1937, o então presidente Getulio Vargas decretou o fim dos partidos, das eleições livres e também da Justiça Eleitoral. A FNB foi dissolvida. Em alguns municípios ela mudou de nome para escapar da repressão, mas acabou perdendo espaço e força. Mesmo assim, continuou tendo seus passos vigiados.
É o que revela a pasta 4.643, aberta pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) em Minas para acompanhar as atividades da FNB, que teve no estado sua segunda maior representação, perdendo apenas para São Paulo, berço do movimento. No acervo do Arquivo Público de São Paulo também podem ser encontrados documentos produzidos sobre a Frente, que abrigava uma grande diversidade de opiniões políticos. Entre suas lideranças havia pessoas com posições mais de esquerda, ligadas aos integralistas e as que defendiam a volta da monarquia.
A FNB EM MINAS Em 17 cidades mineiras foram criadas representações da FNB: a mais importante foi em Guaxupé, no Sul de Minas, onde ficava o comando central da frente no estado. Entre os documentos do Deops, digitalizados pelo Arquivo Público Mineiro (APM), estão cópia do estatuto da FNB, recortes de jornais sobre o movimento negro no estado, uma longa exposição do coordenador da Frente Negra em Minas Gerais, Pio Damião, ao chefe de Polícia Ernesto Dornellas, sobre as acusações feitas por integralistas de que a Frente era “comunista”, e pedidos para manter pelo menos as atividades recreativas após a dissolução dos partidos.
Nesse documento, Pio Damião garante que a Frente não tinha orientação de esquerda. Seu objetivo era o “alevantamento e a unificação da raça negra, que, desde 1888, vem lutando com ingentes sacrifícios, quer natural moral e intelectual, e por isso merece o apoio de todo cidadão honesto”, diz o documento, datado de julho de 1937. Quatro meses depois a FNB caiu na ilegalidade. Para contornar essa situação, foi transformada em sociedade recreativa. Isso ocorreu, por exemplo, em Cássia, no Sul de Minas, onde a frente passou a se chamar Sociedade Negra Princesa Isabel. Mesmo com a mudança do nome, foi fechada em março de 1938, como revela um dos documentos do Deops.
Filho de escravos Em Guaxupé, quem conta a história da Frente são os sobrinhos-netos de Pio Damião, Suely dos Santos, de 64 anos, professora, e Nelson Ramos Damião, de 67, aposentado. Segundo Nelson, com o Estado Novo a Frente em Guaxupé passou a se chamar Associação Recreativa Pio Damião, extinta há cerca de 15 anos. Filho de escravos, Pio Damião começou a trabalhar como cozinheiro na Santa Casa da cidade, e foi promovido a “enfermeiro empírico”. Demitido do hospital, montou uma funerária e um ambulatório público para atender, com a mulher, dona Gerônima, parteira, os pacientes recusados pelo hospital, principalmente negros.
Suely dos Santos diz que o ideal de Damião era promover o negro. “Ele não queria que os negros fossem apenas empregados domésticos e trabalhassem na terra. Ele queria que todos estudassem, tivessem casa e os mesmos direitos dos brancos.” Como era respeitado, conta Sueli, Damião tinha autorização para frequentar o clube onde se reuniam os brancos. “Mas dizem que ele não ficava à vontade vendo seu povo do lado de fora, impedido de entrar. Daí resolveu montar uma associação para promover os negros.”
Falecido em 1945, Pio Damião virou nome de rua e de posto de saúde, mas os registros de sua atuação em defesa da população negra quase não existem mais. Suely, que mora na casa que pertenceu a Damião, guarda algumas fotos e nenhum documento. A papelada que a família herdou foi entregue a historiadores e acabou desaparecendo, relata a professora.