Jornal Estado de Minas

Massacre de Ipatinga será investigado pela Comissão da Verdade após 50 anos

Até hoje o número oficial de mortos no confronto entre policiais militares e operários é contestado

Marcelo da Fonseca
Imagens do dia do confronto. Pelos dados oficiais, oito pessoas morreram, mas há os que contestam esta versão e falam em até 30 mortes - Foto: Hilton Rocha/EM/D.A.Press - 10/1963
Ipatinga –
A maioria dos motoristas que passa por Ipatinga pela BR-381, na altura do Shopping Vale do Aço, não imagina que o lugar já foi cenário de um dos fatos mais trágicos da história mineira. Bem às margens da rodovia, ficava em 1963 a portaria principal da usina siderúrgica da Usiminas – na época empresa estatal –, onde um confronto entre policiais militares e operários deixou mais de 120 trabalhadores feridos e um número de mortos que até hoje não foi esclarecido. Prestes a completar 50 anos, em 7 de outubro, a tragédia que ficou conhecida como Massacre de Ipatinga ainda é motivo de tristeza para os que estiveram no local e viveram uma das primeiras demonstrações da repressão que viria a se espalhar pelo país seis meses depois com o golpe militar.


O registro oficial apontou seis mortos no confronto e outras duas vítimas que morreram no hospital, entre elas uma criança baleada ao colo da mãe, que estava em um ponto de ônibus. No entanto, vários presentes afirmam que o número foi pelo menos cinco vezes maior. “Eu contei 30 mortos logo depois da confusão. Peguei um por um para ver o pulso. Nós conferimos quem estava ferido para levar para o hospital e separamos os que já estavam mortos. Foi uma cena terrível”, lembra Geraldo dos Reis Ribeiro, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Coronel Fabriciano.

Na próxima semana, no mesmo dia em que o massacre completará 50 anos, integrantes da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual – grupo criado na semana passada – estarão na cidade mineira para participar de uma audiência pública que discutirá o caso. O jornalista Jurandir Persichini, um dos integrantes da comissão mineira, trabalhava na usina e considera fundamental para a memória do estado uma nova apuração sobre a tragédia. “Na hora do tiroteio me escondi atrás de um trilho da rede Vitória-Minas, bem perto da entrada”, lembra Persichini.

Entre as questões que colocam em xeque os números oficiais de mortos, o jornalista aponta relatos de funcionários da empresa que compraram 32 caixões no dia seguinte ao massacre. “Esse número (de oito mortos) não bate com o que realmente se passou naquele dia. Já foram feitas audiências sobre o fato, mas são várias lacunas a serem preenchidas. É interessante que este caso seja o primeiro a ser investigado pela comissão, é um caso emblemático de violações aos direitos humanos que ficou esquecido no passado”, diz Persichini.

Para o ex-sindicalista Geraldo Ribeiro, o sumiço dos corpos ainda é o grande mistério em torno do Massacre de Ipatinga. Ele conta que momentos depois dos tiros o cenário era de correria e desespero entre os milhares de operários. “Depois de ajudar os feridos, fui para Timóteo avisar hospitais de Belo Horizonte e a Secretaria de Segurança, porque em Ipatinga não tinha nenhuma forma de comunicação para pedir ajuda. Consegui falar em algumas rádios da capital, avisando o que tinha acontecido. Logo depois voltei para a portaria da usina, mas já não tinha nada por lá. Nem sinais dos corpos. Os vigilantes e policiais dispersaram a multidão e arrumaram tudo”, explica.

Os meses seguintes foram de tensão e muita confusão na cidade e o caso abafado depois que os militares chegaram ao poder, em março de 1964. “As investigações não foram para a frente, ninguém foi punido. Como a maioria dos mortos eram peões, muitos eram homens que vieram do Nordeste para ganhar a vida, pouquíssimas famílias apareceram para saber o que aconteceu. A empresa era muito forte na região e depois do golpe militar todos tinham medo de falar sobre o assunto”, lamenta Geraldo.

Serrinha, no portão da empresa onde toda a confusão teria começado: um prenúncio dos tempos de repressão que estavam por vir - Foto: Edésio Ferreira/EM/D.A.Press

PERSEGUIÇÃO

Para o ex-operador da Usiminas Raimundo Pereira Chaves, de 71 anos, conhecido em Ipatinga como Serrinha, o massacre foi um prenúncio das décadas de repressão que iriam mudar completamente sua vida ao longo da ditadura militar. Funcionário da usina, ele presenciou o tumulto e os desdobramentos na rotina da cidade. Incomodado com as difíceis condições de trabalho a que os operários eram sujeitados, Serrinha participou das mobilizações de 1963 e passou a ser acompanhado de perto depois do golpe de 1964.

Segundo ele, a estatal funcionava como um braço do regime e os funcionários ligados a grupos de esquerda que se mostravam críticos do governo passaram a ser reprimidos. “Os vigilantes da empresa eram na maioria policiais militares que nos monitoravam o tempo inteiro. Além das revistas na entrada e na saída do expediente, eles passaram a saber o que alguns funcionários faziam 24 horas por dia. As estatais passaram a funcionar como braço da ditadura e desconfio que algumas informações sobre líderes chegaram até Brasília, onde eram pedidas demissões ou até prisões”, lembra.

Depois de demitido da estatal, Serrinha não conseguiu mais achar emprego nas empresas que prestavam serviços para a siderúrgica e passou a conviver com ameaças de prisão e intimidações. “Foram dois anos me escondendo na minha própria cidade, sem poder trabalhar e passando dificuldade para sustentar três filhos. Em 1967 tive que ir embora, ou seria preso. Entre os operários a luta era pela sobrevivência e pouco se falava sobre o massacre, mesmo com todos sabendo que foram dezenas de mortos e vários desaparecidos.”

 

O ex-sindicalista Geraldo Ribeiro se lembra da correria e do desespero dos operários depois que os tiros foram disparados - Foto: Edésio Ferreira/EM/D.A.PressO início de tudo

 

Reclamando da precariedade nos alojamentos e refeitórios e uma rotina de acidentes, os operários se juntaram na manhã de 6 de outubro para cobrar melhorias nas condições de trabalho da usina. Como o sindicato não era aceito pela empresa, não houve negociações com os operários. Naquele dia, como represália à mobilização, os vigilantes da empresa barraram alguns trabalhadores na saída, impedindo-os de pegar o último ônibus que os levaria de volta aos alojamentos. A confusão começou naquela noite, com trabalhadores forçando a saída, tentando arrombar um dos portões. A polícia foi chamada para controlar a situação, mas acabou deixando os ânimos mais exaltados.

“Quando os militares chegaram à portaria da Usiminas, não houve conversa, a truculência foi geral. Uma parte dos operários conseguiu ir embora, mas aqueles que moravam mais perto foram seguidos por policiais e vigilantes e durante toda a madrugada foi uma violência generalizada nos alojamentos próximos à usina”, conta Geraldo Ribeiro. Segundo ele, alguns funcionários foram presos e agredidos na delegacia. “Na manhã seguinte, com ajuda de um padre que era conhecido na região, os operários foram soltos. Mas a revolta era grande, eles contaram aos colegas que foram humilhados e espancados. Na portaria mobilizaram mais trabalhadores e uma multidão se formou, com cerca de 5 mil homens”, lembra Geraldo.

O clima tenso se arrastou durante toda a manhã, com os operários exigindo a saída da Polícia Militar da usina e a negociação de melhores condições de trabalho. “O tenente não admitia deixar o local sob vaia. Mas no final da manhã eles aceitaram deixar a usina”, diz o ex-sindicalista. De acordo com relatos de operários que estiveram no local, foi na saída dos militares que a situação ficou fora de controle. “Alguns trabalhadores atiraram pedras no caminhão da polícia e foi aí que os tiros começaram. Um dos militares que estavam no caminhão começou a rodar uma metralhadora para todos os lados, foi um imenso despreparo”, conta Geraldo.