Jornal Estado de Minas

Câmara dos Deputados permite que parlamentares façam jornada dupla

Baixa produtividade da Casa libera parlamentares para trabalharem como médicos, advogados e empresários nos estados. Segundo ofício é legal, mas TCU investiga conflito de interesse

Jorge Macedo - especial para o EM
Adriana Caitano

Brasília – Na mesma medida em que a falta de aproveitamento dos dias úteis na Câmara dos Deputados torna a rotina da Casa improdutiva – o plenário ficou vazio durante pelo menos seis meses no último ano –, o tempo livre que sobra aos parlamentares facilita um fenômeno comum entre os congressistas: a dupla jornada. Apesar de, oficialmente, o parlamento justificar que há atividades políticas a serem feitas nos outros dias da semana em que não há sessões, muitos deputados aproveitam para exercer outras profissões remuneradas. A atuação extra não é proibida, mas está na mira do Tribunal de Contas da União (TCU), que observa casos de conflito de interesses. Especialistas divergem sobre a necessidade de uma dedicação política exclusiva.

Um levantamento feito pela Secretaria-Geral da Câmara a pedido do Estado de Minas mostra que apenas dois dos 513 deputados no exercício do mandato declaram ter como profissão exclusiva a política. Seis citam “político” como uma de suas ocupações. Os outros 511 parlamentares preencheram o campo destinado à categoria com atividades como advogado, médico, empresário ou produtor rural (veja quadro). Não há dados finais sobre quantos deles de fato exercem essas ocupações simultaneamente à de congressista, mas os próprios deputados afirmam que a maioria tem outro trabalho.

O deputado Eleuses Paiva (PSD-SP) é um dos recordistas em jornada múltipla da Casa. Além de vice-líder de bancada, é professor da Faculdade de Medicina de Rio Preto (SP), dá palestras em congressos médicos, é diretor substituto de medicina nuclear do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, e ainda atende em um hospital de Rio Preto e numa clínica particular.

Segundo Paiva, as atividades extras são exercidas de sexta a segunda-feira, quando não há votações na Câmara. “Dá para fazer todas as coisas bem, tudo vai do quanto quer se dedicar e eu aprendi a ter disciplina”, comenta. “Quando me candidatei pela primeira vez, meu ex-professor Adib Jatene (ex-ministro da Saúde nos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso) disse para eu nunca abandonar minha profissão, porque política não é profissão, é um momento da vida em que a gente se dedica a uma causa pública”, conta.

Nem todos, porém, conseguem manter muitas atividades. O deputado Abelardo Lupion (DEM-PR) está no sexto mandato na Câmara. Nos últimos 22 anos, conciliou a atuação política com uma empresa do ramo imobiliário e as fazendas que possui. Ele garante que as ações profissionais nunca o atrapalharam no mandato parlamentar, mas assegura que se cansou e não deve ser candidato à reeleição em 2014. “Não deixei a peteca cair, sempre fui atuante e, ao mesmo tempo, vivo o dia a dia de quem eu represento”, garante. “Mas paguei muito caro por estar aqui, fui um pai ausente e deixei de fazer muitos negócios”, afirma.

Na lista de parlamentares que mantêm atividades extras estão ainda alguns dos mais conhecidos, como o pastor Marco Feliciano (PSC-SP), que faz shows e pregações evangélicas de quinta-feira à noite até segunda-feira, e Tiririca (PR-SP), que faz shows de humor nos fins de semana. “Larguei um programa de tevê porque estava complicado faltar lá para não perder as sessões”, conta o humorista.

Conflito ético Especialistas destacam que a dupla jornada dos parlamentares não é proibida pela Constituição. No entanto, lembram, é preciso avaliar se há conflito ético na prática. “Enquanto não há proibição, é legítimo, desde que de fato não comprometa a atuação parlamentar. Isso é critério de cada um. Se o eleitor aceita, tudo bem”, afirma o professor de ciências políticas da Universidade de Brasília (UnB) David Fleischer. Ele cita o exemplo do ex-presidente da República Juscelino Kubitschek, que exerceu a medicina enquanto era deputado federal e prefeito de Belo Horizonte. “Os congressos mundo afora também não proíbem a prática, mas, muitas vezes, ela se inviabiliza pela distância entre a capital e os estados de origem”, narra.

Para o analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antônio Augusto Queiroz, cabe à população acompanhar o deputado em que votou e checar se ele tem de fato se dedicado ao mandato. “Como não é proibido hoje, não tem como cobrar que não tenham outra atividade, mas acho que, se eles estão sendo remunerados, a dedicação deveria ser exclusiva, permitindo apenas atuações que tenham relação com o mandato e ainda sem retorno financeiro”, defende.
Já na opinião do diretor da ONG Transparência Brasil, Claudio Abramo, a sobra de tempo que permite aos parlamentares ter outras atividades é um problema institucional. “Não interessa o que eles fazem para se ocupar fora do Congresso, mas, se foram eleitos para cumprir mandato que exige atividade no Parlamento, não precisa ser 100% do tempo, mas precisa ser um tempo razoável, pelo menos quatro dias na semana”, reage. “O que não dá é para manter a casa legislativa mais cara do mundo e os parlamentares trabalharem praticamente só dois dias”.

Fiscalização não coíbe irregularidades


Apesar de a prática profissional em outro ramo não ser proibida a parlamentares, órgãos fiscalizadores entram em ação quando as empresas de parlamentares têm alguma ligação com o poder público, o que é inconstitucional e pode render-lhes a perda de mandato. Alguns se aproveitam de brechas para burlar a regra, passando o empreendimento para o nome de parentes, por exemplo. E há casos em que nem mesmo há fiscalização, como ocorre com quem comanda emissoras de rádio e tevê, que são concessões públicas. De acordo com dados de 2011 do Ministério das Comunicações, 56 parlamentares são donos ou têm parentes como sócios de empresas desse tipo, mas nenhum deles sofre qualquer sanção.

Após fazer auditoria em 142 mil contratos do governo federal assinados entre 2006 e 2010, o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou parlamentares em exercício em agosto de 2010 que eram donos de pelo menos 50% de empresas contratadas pela administração pública federal. O acórdão publicado em 2011 apontou inclusive que um deles assinou pessoalmente um desses termos contratuais. A lista de acusados é considerada sigilosa e foi encaminhada ao Ministério Público Eleitoral e aos conselhos de ética da Câmara e do Senado. No acórdão, o TCU recomendou que o Congresso e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aperfeiçoassem “a verificação do cumprimento da Constituição”, que proíbe a prática. Não há informações de que algum acusado tenha sido punido.

Em outras decisões, o Tribunal de Contas considerou irregular também a concessão de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) a empresas que têm parlamentares como sócios. Em um acórdão de 1998, o órgão indicou que “a pura obtenção do crédito com recursos públicos já é, por si, um favor, mesmo sem exame das condições contratuais”. Em 1996, o TCU havia destacado que “a função de representante do povo com a de direção de empresas que recebem recursos públicos são incompatíveis e essa situação, além de antijurídica, é antiética”.