Jornal Estado de Minas

Sonho da casa própria vira risco de vida no Triângulo Mineiro

Famílias de um conjunto habitacional construído com recursos do Minha casa, minha vida convivem com o medo diário: suas moradias, além de mal-acabadas e cheias de problemas, estão pegando fogo

Alessandra Mello
Incêndio ocorrido em julho numa das casas do conjunto Shopping Park. Apesar das perdas materiais, neste caso ninguém saiu ferido - Foto: Vinícius Lemos/Correio de Uberlândia
Uberlândia – Era uma casa muito sonhada, mas não tinha laje, não tinha muro, não tinha piso, não tinha quintal, não tinha privacidade, não tinha graça, não tinha nada. E o que é pior: pegava fogo. Podia ser apenas uma paródia da música do poeta e compositor Vinicius de Moraes, mas é a realidade vivida hoje pelas famílias do conjunto habitacional Shopping Park, em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, empreendimento de R$ 144 milhões, financiado pela Caixa Econômica Federal (CEF) com recursos do programa federal Minha casa, minha vida e erguido sob a responsabilidade da prefeitura. A reportagem do Estado de Minas percorreu a pé durante um dia inteiro o conjunto – inaugurado durante a gestão do ex-prefeito Odelmo Leão (PP) em 2011–, que abriga 3.632 famílias de baixa renda, todas numerosas, com muitas crianças e portadores de deficiência.
Os problemas são muitos e as reclamações generalizadas. Para começar, as casas, geminadas, não têm parede até o teto. Elas acabam num forro – não há laje –, o que faz com que o vizinho escute tudo que se passa ao lado. Em algumas delas, o quintal é desnivelado, com barrancos de até quatro metros de altura, impossibilitando o uso do terreno pelas famílias. O forro no interior cobre todo o teto e esconde a rede elétrica, que, segundo os moradores, é feita de material de baixíssima qualidade. Em muitas residências, as lâmpadas não se acendem ou  se aquecem demais e queimam com frequência. Das tomadas e do chuveiro saem fogo, a energia cai quando mais de um aparelho elétrico é ligado ao mesmo tempo e há muitos relatos de pequenos incêndios. As caixas de energia não têm tampas e a fiação está exposta.

Destroços de parte da casa de Célia de Jesus, que morreu no incêndio em setembro - Foto: Cleiton Borges/Correio de UberlândiaPelo menos quatro residências do conjunto já pegaram fogo este ano. Uma delas, em 23 de setembro. O dono da casa, William Bonifácio, contou à imprensa que o fogo começou no quarto onde os seus três filhos dormem. Por sorte, ninguém se feriu, mas ele perdeu móveis e eletrodomésticos. “Acredito que o fogo tenha começado no alto da casa e algo de plástico pingou atrás do guarda-roupa. Também queimou parte da fiação do quarto”, afirmou.

Laudo dos bombeiros que tentaram socorrer a aposentada ainda não foi concluído - Foto: Cleiton Borges/Correio de Uberlandia
No caso mais grave, em 12 de setembro, uma idosa de 78 anos, Célia de Jesus Silva, morreu asfixiada. Sua casa está fechada desde o incêndio, mas por uma fresta no muro é possível ver o estado em que o imóvel ficou. Do lado exterior não há nenhum sinal de fogo ou fumaça, mas é possível ver de longe que o forro do teto da casa derreteu completamente e alguns fios estão pendurados. Como todas as casas são geminadas, o fogo atingiu a residência ao lado, também fechada desde então.

O medo de novos incêndios ronda as famílias, principalmente as que têm filhos pequenos ou idosos e doentes. O Corpo de Bombeiros de Uberlândia ainda não concluiu o laudo sobre as causas do fogo, mas para os moradores o problema é a instalação elétrica feita pelas construtoras responsáveis pela obra, Marca Registrada, El Global, Emcasa e Castroviejo. Até mesmo uma audiência pública na Câmara de Uberlândia foi realizada para tratar desse problema específico. Semana passada todas as empreiteiras foram denunciadas, juntamente com a prefeitura e a CEF, pelo procurador federal Cléber Eustáquio Neves, em uma ação civil pública que pede reparação imediata dos problemas do conjunto habitacional e a proibição para que projetos similares ao do Shopping Park sejam implantados em outras localidades.

Arremedo

Em sua ação, o procurador classifica as residências como “arremedo de casas” e afirma que elas não têm o “mínimo padrão de dignidade e não observam regras técnicas de construção definidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), fator decisivo para o rebaixamento do nível de vida das famílias do conjunto”. O procurador também pede a implantação imediata no local de serviços essenciais. No conjunto só existe uma escola municipal e uma creche, ambas com capacidade reduzida. “Esses arremedos foram inaugurados com grande pompa pelos políticos locais sem que existissem no local escolas, postos de saúde e outros equipamentos sociais.”

As casas têm cerca de 40 metros quadrados de área construída e teriam custado às empreiteiras R$ 39,7 mil cada. Elas foram financiadas pela CEF em 10 anos com prestações subsidiadas que variam de R$ 50 a R$ 160. Os lotes onde foram construídas as residências pertenciam à iniciativa privada e foram adquiridos pelas empreiteiras. A prefeitura foi a responsável pela seleção das famílias, vistoria para a liberação de habite-se e também pela execução das obras de pavimentação da via de acesso ao conjunto e da implantação da adutora de água e da estação de esgoto, obras que, segundo a atual gestão, custaram aos cofres públicos cerca de R$ 1 milhão.

Caixa admite problemas


A Caixa Econômica Federal (CEF) admitiu, por meio de nota, que 600 unidades habitacionais do residencial Shopping Park foram entregues faltando portas, pias, vasos sanitários e outros equipamentos. A justificativa do banco é que o conjunto foi invadido na fase de assinatura dos contratos e que temendo novas invasões os proprietários se mudaram para as residências. Inauguradas há cerca de dois anos, muitas das casas continuam sem os equipamentos, mas de acordo com a CEF isso será resolvido este mês.

A CEF informou ainda que está fazendo muros de arrimo nas residências em que há risco de desabamento com a chegada do período de chuvas. Sobre os quintais desnivelados, o banco confirma que foram entregues imóveis com terreno desse tipo e sem muro de arrimo. De acordo com a instituição alguns proprietários aplainaram os seus lotes e removeram os taludes (cortes inclinados em barrancos para evitar desmoronamento) e não construíram muro de arrimo para contenção do desnível por essa intervenção. “Com esse tipo de intervenção, criou-se barranco instável, e ao não conseguir construir o muro de arrimo antes da temporada de chuvas, esses barrancos podem vir a pôr em risco de desmoronamento casas vizinhas dos fundos.”

Sobre as reclamações da péssima qualidade do material usado no acabamento das casas, principalmente da parte elétrica, a CEF disse que o banco e as construtoras estão recebendo reclamações dos moradores pessoalmente, por telefone ou e-mail, e que uma das empreiteiras já iniciou a troca de bocais de luz das unidades do empreendimento. Segundo a nota, se os problemas forem de responsabilidade das construtoras eles serão reparados e os gastos cobrados das empresas.

O secretário de Habitação de Uberlândia, Delfino Rodrigues, disse que a atual gestão acertou com o banco a realização de uma vistoria em todas as casas do conjunto para levantamento dos problemas para serem reparados. Segundo ele, a CEF vai arcar com as despesas e, se for constatada culpa das empreiteiras, elas serão acionadas para custear os gastos. Disse ainda que a prefeitura tem direito a recursos de um fundo especial de R$ 2,1 milhões para a capacitação social e técnica de famílias do Minha casa, minha vida e que o recurso não foi aplicado pela gestão passada. “Estamos concluindo os projetos sociais para o conjunto e logo vamos começar a implantá-los.” O ex-secretário de Habitação de Uberlândia vereador Felipe Attiê, responsável pela implantação do conjunto, não foi localizado. A reportagem ligou em seu gabinete e em seu celular, mas ele não retornou as ligações.

Segunda-fase


O programa Minha casa, minha vida começou em 2009 como o objetivo de reduzir o déficit habitacional brasileiro. Na primeira fase, até 2010, um milhão de moradias foram construídas. A segunda fase começou em 2011 e vai até 2014, com a promessa de construir 2 milhões de unidades, 60% delas voltadas para famílias de baixa renda. Segundo dados do Ministério das Cidades, em Minas foram investidos R$ 16 bilhões para a contratação de 253 mil casas, com 139,6 mil entregues. Na área urbana, o programa é dividido por três faixas de renda mensal: até R$ 1,6 mil, até R$ 3,1 mil e até R$ 5 mil.