Jornal Estado de Minas

Cresce suspeita de fraude na autópsia de JK

Comissão quer ouvir versão do legista que participou da exumação de restos mortais do motorista e do ex-presidente

Bertha Maakaroun - enviada especial
Josias Nunes de Oliveira diz ter recusado dinheiro para assumir culpa pelo acidente em que morreu JK - Foto: Guilherme Bergamini/ALMG Uma nova linha de investigação em torno das circunstâncias da morte de Juscelino Kubitschek aberta pela Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo poderá mudar a versão corrente do acidente de carro na Via Dutra, em 22 de agosto de 1976, na altura da cidade de Resende (RJ). Gilberto Natalini (PV), vereador que preside a comissão, disse ontem, em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas, que está à procura de um dos legistas – cujo nome ainda mantém em sigilo – que estiveram presentes na necrópsia de JK e de seu motorista, Geraldo Ribeiro, realizada no Rio de Janeiro após o acidente. “Essa pessoa está viva, esteve dentro da sala de autópsia e queremos que nos conte o que viu naquela sala”, afirmou Natalini.

 
Quem contou ao vereador o que o legista viu foi o jornalista aposentado Wanderley Midei, que fez a cobertura do caso, em 1976, e entrevistou um médico que teve acesso à necrópsia de Ribeiro. Segundo ele, o legista contou que constatou um buraco no lado esquerdo do crânio do motorista. A nova linha de investigação sustenta a tese de que um tiro teria atingido a cabeça de Ribeiro, o que explicaria o fato de o carro, que trafegava em direção ao Rio de Janeiro, ter se desgovernado e ido para pista oposta, chocando-se de frente com uma carreta Scania Vabis, de Santa Catarina.

Se o fato for elucidado, o motorista da Viação Cometa Josias Nunes de Oliveira, que fará 70 anos esta semana, poderá, enfim ter paz. Durante décadas, o regime militar tentou responsabilizá-lo pelo acidente que vitimou JK. Ele dirigia um ônibus que havia partido de São Paulo para o Rio de Janeiro, com 33 passageiros. Em depoimento ontem à Comissão de Direitos Humanos, Josias voltou a contar a sua história. “Nem eu bati no Opala nem o Opala bateu em mim. Eu vi o acidente e parei para socorrer”, explicou.

“Abaixo de Deus, quem viu JK morrer fui eu”, relatou Josias, chorando, ao se lembrar que presenciou os últimos suspiros de um dos presidentes da República mais populares da história brasileira. “Depois disso, minha vida acabou. Simularam tinta do veículo em que estava o ex-presidente na lataria do ônibus e, com isso, fui indiciado pelo acidente”, disse. Josias foi absolvido, mas a sua vida sofreu um baque. “Eu tinha 33 anos. Cinco anos depois pedi demissão e não consegui mais emprego”, relatou ele, que depois de fazer diversos bicos e vagar longe da família, vive hoje num asilo em Indaiatuba, São Paulo, com uma aposentadoria de R$ 997.

Josias repetiu em seu depoimento o que havia dito à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, relatando ter sido procurado em casa por homens que carregavam uma mala de dinheiro, propondo a ele que assumisse o suposto choque entre o ônibus e o Opala. “Não aceitei. Eles levaram 40 minutos pedindo para eu falar que era culpado. Minha cunhada morava comigo e foi se aproximando quando viu o dinheiro. A mandei voltar para trás na hora”, afirmou o motorista, que revelou ter enfrentado a pressão do delegado responsável pelo caso que tentou convencê-lo de que seria melhor se dissesse que havia causado o desastre.

Exumação

A comissão da Câmara paulistana investiga a tese de que o carro de JK se desgovernou depois de o motorista ser atingido na cabeça por um projétil, denominado batente, de fabricação e uso exclusivo das Forças Armadas. O grupo pediu à Justiça de Minas nova exumação dos restos mortais de Geraldo Ribeiro, depois que a primeira, feita em 1996, concluiu que se tratava de um prego solto do caixão. O deputado Durval Ângelo (PT), autor do requerimento para a audiência de ontem, acredita que o laudo foi fraudado. “Vamos requerer da Comissão da Verdade uma audiência pública em Diamantina, com a presença do legista que viu a autópsia de Geraldo Ribeiro, e declarar o assassinato de JK”, afirmou Durval. Ele quer que  o Estado brasileiro faça um pedido formal de desculpas ao motorista e lhe dê compensação financeira na forma de correção da sua aposentadoria por invalidez. “Nada paga o que passei”, disse Josias.

Memória

Razões para o suposto atentado

O contexto político da época da morte de JK favorece a tese do atentado político. Dois anos antes do acidente, ele havia recuperado os direitos políticos cassados logo após o golpe militar de 1964, quando era senador por Goiás. JK era percebido como ameaça por setores da linha dura do regime, resistentes à reabertura política. Vigorava a Operação Condor, ação conjunta de governos militares do Cone Sul para minar a oposição democrática. Corrobora esse clima uma carta do coronel chileno Manuel Contreras enviada em 1975 ao general Figueiredo, que era chefe do Serviço Nacional de Informações. Contreras tratava da possibilidade da vitória democrata nos Estados Unidos como uma ameaça à estabilidade no Cone Sul, uma vez que JK poderia ser apoiado por aquele partido norte-americano, assim como Orlando Letelier, ex-ministro do Exterior do governo chileno de Salvador Allende. Um ano depois, Letalier foi assassinado em Washington, em atentado atribuído aos agentes chilenos da Dirección de Inteligencia Nacional (Dina). Além do acidente que matou JK em 1976, em dezembro daquele mesmo ano morreu o ex-presidente João Goulart, de ataque cardíaco, e pouco meses depois, Carlos Lacerda, apoiador arrependido do golpe de 1964, que, ao lado de JK e Goulart, formava a Frente Ampla pela redemocratização do país.