Além de estender seu trabalho por seis meses, com apresentação do relatório final somente em novembro, integrantes da Comissão Nacional da Verdade (CNV) querem transformá-la em um projeto permanente de pesquisa e memória em razão do grande volume de material a ser analisado por pesquisadores. O documento deveria ser apresentado em maio, quando se completariam dois anos da criação da comissão, mas alguns percalços, como o reduzido número de funcionários para análise do volume de informações e até mesmo rachas internos, tornaram isso inviável. Para o historiador Marcelo Zelic, vice-presidente do Movimento Tortura Nunca Mais de São Paulo, a proposta é importante para o aprofundamento de investigações, especialmente as relativas a violações dos direitos humanos de camponeses e indígenas, que estão sendo tratadas como temas de “segunda categoria”.
Amarildo
Crítico da atuação da Comissão da Verdade, o historiador Marcelo Zelic concorda que houve avanços no esclarecimento de alguns casos, mas lamenta que eles não tenham repercussão para a sociedade. “A confirmação da tortura aos militantes de esquerda deveria se traduzir na abolição dessa prática pelo Estado. Esse aspecto, no entanto, não foi abordado. Prova disso é o caso Amarildo”, lamentou Zelic. Amarildo Dias de Souza foi executado por policiais militares de uma unidade de polícia pacificadora (UPP), depois de ser torturado na Favela da Rocinha, no Rio. Para ele, a repetição da tortura por agente do Estado “prova que não existe nunca mais no Brasil”. “Não podemos apenas discursar. A tortura nunca mais é um processo que precisa ser construído, a partir da mudança de conduta do Estado brasileiro”, conclui o historiador.
Para ele, outra distorção nos trabalhos da comissão, composta por 13 grupos de trabalho, é dar maior relevância a certos temas em detrimento de outros, como vem acontecendo com o grupo que apurou a “estrutura da repressão”, que já tem até mesmo relatório final. Zelic cita como exemplo a divulgação do Relatório Figueiredo – documento de mais de 5 mil páginas, produzido entre os anos de 1967 e 1968, quando o então procurador Jader de Figueiredo Correia percorreu o país para apurar denúncias de crimes cometidos contra a população indígena –, que apesar de ter sido feita há mais de seis meses, em nada resultou. “Parece que nada existiu, porque não houve nenhum retorno para a sociedade sobre as medidas adotadas. A comissão precisa melhorar sua relação com a sociedade para envolvê-la e, de fato, ter efeito reparador”, conclui o historiador.
O volume de trabalho na Comissão da Verdade pode ser traduzido em números. Este ano, ela realizou aproximadamente 40 audiências públicas e tomadas de depoimentos de repressores, ex-militantes de esquerda e de militares em todo o Brasil. Foram ouvidas 405 pessoas até a segunda semana deste mês, merecendo destaque o do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do 2º Exército em São Paulo entre 1970 e 1974. Nos depoimentos, ele negou a execução de militantes de esquerda mas admitiu que a perseguição contra ativistas no regime militar era uma “luta pela democracia”.