W.J., um adolescente negro de 15 anos, foi baleado atrás da orelha por um policial militar em Betim, Região Metropolitana de Belo Horizonte, em 5 de dezembro. A Polícia Militar (PM) diz que o tiro foi dado porque ele resistiu à prisão após uma perseguição de carro no Bairro Capelinha, periferia do município. Segundo a família do garoto, testemunhas que presenciaram a ação policial negam que W.J. tenha resistido à prisão e afirmam que ele foi alvejado já rendido, assim que saiu do veículo. Três homens que estavam com o garoto fugiram. Nenhuma arma foi apreendida.
O caso reúne ingredientes que costumam compor os chamados “autos de resistência”, expressão comum nos boletins de ocorrência para explicar mortes e lesões ocorridas durante a ação policial, com a qual projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados pretende acabar. Mais do que uma simples troca de nomes nos registros, o projeto busca combater as possibilidades de ações criminosas de policiais permanecerem impunes, determinando uma série de atitudes a serem tomadas pelas autoridades para garantir que esses casos sejam investigados e, quando confirmado que houve crime, punidos, pondo fim à “fraude da resistência”.
Dona Leir Viana da Silva, de 47, mãe do adolescente baleado em Betim, não sabe se foi aberta alguma investigação para apurar as circunstâncias que envolveram o disparo nem qual foi o destino do PM que atirou em seu filho. O comandante da companhia responsável pelo policiamento no Bairro Capelinha, major Marcelo de Melo, disse que o policial foi levado a um juiz e liberado em seguida e que inquérito foi instaurado para apurar o caso. Ele garante que os policiais que atuaram na perseguição são exemplares e que os envolvidos na ocorrência são bandidos. O major admite que W.J. não tem passagem pela polícia, mas comenta: “Quem anda com porco, farelo come”.
As perspectivas do adolescente, que no dia 5 completará 16 anos, são sombrias. Se escapar de engrossar as estatísticas de mortes ocorridas durante ações policiais no Brasil – que lidera o ranking internacional nesse item, segundo estudo divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública –, o rapaz, internado em estado grave desde que foi baleado, tende a ficar com sequelas do ferimento provocado pelo tiro. Segundo dona Leir, o disparo foi feito de perto. Ela não tem muita esperança de esclarecer o que ocorreu, já que até hoje não foi procurada por nenhuma autoridade policial. “Se é difícil apurar crime comum, imagine quando o envolvido é policial”, lamenta a dona de casa, que já perdeu um filho, assassinado durante uma festa.
É que mortes provocadas por policiais no exercício da profissão são tratados de maneira diferente sob alegação de que foram decorrentes de legítima defesa, com o objetivo de “vencer a resistência” de suspeitos ou proteger civis. Nos boletins de ocorrência, elas costumam ser classificadas como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, expressões criadas durante o regime militar e amplamente combatida pelos movimentos sociais e entidades de defesa dos direitos humanos.
O Projeto de Lei 4.471/2012, pronto para ser votado na Câmara dos Deputados, altera o Código de Processo Penal e estabelece normas para a investigação das mortes e lesões corporais cometidas por policiais durante o trabalho. O texto acaba com as classificações genéricas das mortes e lesões ocorridas durante ações policiais e impõe regras claras sobre como deve ser a apuração dos fatos, inclusive com recomendações sobre coleta de depoimento de testemunhas, preservação da cena do possível crime e regras para a realização dos exames de corpo de delito.
O projeto estabelece que os termos “autos de resistência” e “resistência seguida de morte” sejam trocados por “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”. O PL determina que o Ministério Público, a Defensoria Pública e órgão de controle da atividade policial sejam comunicados imediatamente das mortes ou lesões. Um dos autores do projeto, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) afirma que seu principal objetivo é evitar que as terminologias atuais escondam violações de direitos humanos ou ações de grupos de extermínio.
Realidade camuflada nas ruas
As estatísticas das mortes em decorrência da atividade policial são subestimadas. Quem garante é a secretária-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, que este ano fez um levantamento dos casos de homicídio no Brasil com foco na letalidade policial e defende o fim do registro de “autos de resistência”. Segundo ela, muitos estados não mantêm dados atualizados e as 1.890 mortes comunicadas não representam a realidade. “E olha que mesmo subestimados esses números já são altos”, comenta Samira, que espera controle maior com a entrada em vigor do Sistema Nacional de Estatísticas em Segurança Pública e Justiça Criminal (SINESPJC).
A partir do ano que vem, os estados serão obrigados a manter dados atualizados de homicídios, incluindo os causados por policiais em serviço. “O repasse de verbas da segurança para os governos está condicionado à alimentação desse sistema”, explica Samira. Para ela, esse controle não tem por objetivo desmerecer a atuação e sim discutir padrões de operação das polícias, “que têm um papel relevante no desenvolvimento social, econômico e cultural baseado no respeito e na cultura da paz”.
Para o historiador e sociólogo Douglas Belchior, integrante do Movimento Uneafro Brasil e do Comitê contra o Genocídio da População Negra, os autos de resistência camuflam os crimes cometidos pelo aparato do Estado contra “pobres, pretos e moradores de periferia”. Segundo ele, o fim dos autos com a aprovação do PL 4.471/2012 seria apenas o começo de um movimento crescente contra a violência policial. “Na maioria dos casos as vítimas acabam sendo culpadas e os policiais ficam livres de investigação”, afirma.
Para ele, esse tipo de anotação nas ocorrências policiais é um “fantasma dentro de casa”. “Os autos de resistência são amplamente conhecidos e utilizados para maquiar crimes, mas ninguém faz nada para mudar.” O projeto esteve prestes a ser aprovado, por causa das pressões das manifestações de junho, mas assim que elas arrefeceram ele empacou de novo. Em São Paulo, registros com essa terminologia foram proibidos este ano por determinação do governo, depois de uma enorme pressão provocada pelo grande número de mortes ocorridas em ações policias: 563 somente no ano passado. De acordo com Belchior, já houve queda nos crimes decorrentes de confronto com a polícia. Para ele, o PL 4.711 não vai acabar de uma hora para a outra com a letalidade das ações da polícia, mas vai favorecer o controle da atividade das forças de segurança.
NÃO PEGOU
Resolução editada em 21 de dezembro de 2012 pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos já recomenda que policiais deixem de usar em seus registros, boletins de ocorrência, inquéritos e notícias de crimes designações genéricas para as mortes e lesões ocorridas durante sua ação. A resolução também recomenda que nesses casos, entre outras providências, devem ser instaurados inquéritos policiais para investigação de homicídio ou de lesão corporal, mas nem todos os estados aderiram.
O caso reúne ingredientes que costumam compor os chamados “autos de resistência”, expressão comum nos boletins de ocorrência para explicar mortes e lesões ocorridas durante a ação policial, com a qual projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados pretende acabar. Mais do que uma simples troca de nomes nos registros, o projeto busca combater as possibilidades de ações criminosas de policiais permanecerem impunes, determinando uma série de atitudes a serem tomadas pelas autoridades para garantir que esses casos sejam investigados e, quando confirmado que houve crime, punidos, pondo fim à “fraude da resistência”.
Dona Leir Viana da Silva, de 47, mãe do adolescente baleado em Betim, não sabe se foi aberta alguma investigação para apurar as circunstâncias que envolveram o disparo nem qual foi o destino do PM que atirou em seu filho. O comandante da companhia responsável pelo policiamento no Bairro Capelinha, major Marcelo de Melo, disse que o policial foi levado a um juiz e liberado em seguida e que inquérito foi instaurado para apurar o caso. Ele garante que os policiais que atuaram na perseguição são exemplares e que os envolvidos na ocorrência são bandidos. O major admite que W.J. não tem passagem pela polícia, mas comenta: “Quem anda com porco, farelo come”.
As perspectivas do adolescente, que no dia 5 completará 16 anos, são sombrias. Se escapar de engrossar as estatísticas de mortes ocorridas durante ações policiais no Brasil – que lidera o ranking internacional nesse item, segundo estudo divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública –, o rapaz, internado em estado grave desde que foi baleado, tende a ficar com sequelas do ferimento provocado pelo tiro. Segundo dona Leir, o disparo foi feito de perto. Ela não tem muita esperança de esclarecer o que ocorreu, já que até hoje não foi procurada por nenhuma autoridade policial. “Se é difícil apurar crime comum, imagine quando o envolvido é policial”, lamenta a dona de casa, que já perdeu um filho, assassinado durante uma festa.
É que mortes provocadas por policiais no exercício da profissão são tratados de maneira diferente sob alegação de que foram decorrentes de legítima defesa, com o objetivo de “vencer a resistência” de suspeitos ou proteger civis. Nos boletins de ocorrência, elas costumam ser classificadas como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, expressões criadas durante o regime militar e amplamente combatida pelos movimentos sociais e entidades de defesa dos direitos humanos.
O Projeto de Lei 4.471/2012, pronto para ser votado na Câmara dos Deputados, altera o Código de Processo Penal e estabelece normas para a investigação das mortes e lesões corporais cometidas por policiais durante o trabalho. O texto acaba com as classificações genéricas das mortes e lesões ocorridas durante ações policiais e impõe regras claras sobre como deve ser a apuração dos fatos, inclusive com recomendações sobre coleta de depoimento de testemunhas, preservação da cena do possível crime e regras para a realização dos exames de corpo de delito.
O projeto estabelece que os termos “autos de resistência” e “resistência seguida de morte” sejam trocados por “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”. O PL determina que o Ministério Público, a Defensoria Pública e órgão de controle da atividade policial sejam comunicados imediatamente das mortes ou lesões. Um dos autores do projeto, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) afirma que seu principal objetivo é evitar que as terminologias atuais escondam violações de direitos humanos ou ações de grupos de extermínio.
Realidade camuflada nas ruas
As estatísticas das mortes em decorrência da atividade policial são subestimadas. Quem garante é a secretária-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, que este ano fez um levantamento dos casos de homicídio no Brasil com foco na letalidade policial e defende o fim do registro de “autos de resistência”. Segundo ela, muitos estados não mantêm dados atualizados e as 1.890 mortes comunicadas não representam a realidade. “E olha que mesmo subestimados esses números já são altos”, comenta Samira, que espera controle maior com a entrada em vigor do Sistema Nacional de Estatísticas em Segurança Pública e Justiça Criminal (SINESPJC).
A partir do ano que vem, os estados serão obrigados a manter dados atualizados de homicídios, incluindo os causados por policiais em serviço. “O repasse de verbas da segurança para os governos está condicionado à alimentação desse sistema”, explica Samira. Para ela, esse controle não tem por objetivo desmerecer a atuação e sim discutir padrões de operação das polícias, “que têm um papel relevante no desenvolvimento social, econômico e cultural baseado no respeito e na cultura da paz”.
Para o historiador e sociólogo Douglas Belchior, integrante do Movimento Uneafro Brasil e do Comitê contra o Genocídio da População Negra, os autos de resistência camuflam os crimes cometidos pelo aparato do Estado contra “pobres, pretos e moradores de periferia”. Segundo ele, o fim dos autos com a aprovação do PL 4.471/2012 seria apenas o começo de um movimento crescente contra a violência policial. “Na maioria dos casos as vítimas acabam sendo culpadas e os policiais ficam livres de investigação”, afirma.
Para ele, esse tipo de anotação nas ocorrências policiais é um “fantasma dentro de casa”. “Os autos de resistência são amplamente conhecidos e utilizados para maquiar crimes, mas ninguém faz nada para mudar.” O projeto esteve prestes a ser aprovado, por causa das pressões das manifestações de junho, mas assim que elas arrefeceram ele empacou de novo. Em São Paulo, registros com essa terminologia foram proibidos este ano por determinação do governo, depois de uma enorme pressão provocada pelo grande número de mortes ocorridas em ações policias: 563 somente no ano passado. De acordo com Belchior, já houve queda nos crimes decorrentes de confronto com a polícia. Para ele, o PL 4.711 não vai acabar de uma hora para a outra com a letalidade das ações da polícia, mas vai favorecer o controle da atividade das forças de segurança.
NÃO PEGOU
Resolução editada em 21 de dezembro de 2012 pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos já recomenda que policiais deixem de usar em seus registros, boletins de ocorrência, inquéritos e notícias de crimes designações genéricas para as mortes e lesões ocorridas durante sua ação. A resolução também recomenda que nesses casos, entre outras providências, devem ser instaurados inquéritos policiais para investigação de homicídio ou de lesão corporal, mas nem todos os estados aderiram.