Uma Kombi estaciona em frente a uma repartição pública do estado na Região Central de Belo Horizonte. Quatro homens descem do veículo e entram no prédio. Apresentam-se como funcionários da fabricante das duas impressoras de grande porte que acabavam de ser compradas pelo governo. “As máquinas precisam de manutenção. Temos que levá-las.” Na Kombi lá fora, lê-se em suas portas a mesma marca grafada nos equipamentos. As impressoras são entregues e nunca mais retornam para o governo. Viraram replicadoras de boletins, jornais e panfletos contra a ditadura militar.
O ano era 1966. Os “funcionários” da fabricante de impressoras eram, na verdade, alunos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) militantes do movimento estudantil contrário ao governo imposto pelos militares no Golpe de 1964, que completa 50 anos no dia 31.
O roubo das impressoras só teve sucesso pela ousadia e perspicácia dos estudantes. Mas o acesso à informação de que as máquinas estavam na repartição pública só foi possível pela existência de uma rede de informantes, anônimos, também contrários ao regime militar. “Tínhamos gente lá dentro”, conta Waldo Silva, de 70 anos, um dos mentores da operação para captura das impressoras.
O apoio mais expressivo ao movimento estudantil, no entanto, veio de dentro das próprias escolas. Reitores, diretores de cursos e professores, que, muitas vezes mesmo sem concordar com a ideologia de esquerda de seus alunos, invariavelmente defendiam o direito de manifestação. A atuação do corpo docente da UFMG foi fundamental nos três principais confrontos de estudantes contra os policiais da repressão na década de 1960 em Belo Horizonte: os cercos à Fafich e às escolas de Direito e Medicina.
Pela defesa dos alunos, o reitor Gérson de Britto Mello Boson, que comandou a universidade de fevereiro de 1967 a outubro de 1969, foi cassado pelo regime militar. Outro ocupante do cargo, Aluísio Pimenta, que esteve no posto entre fevereiro de 1964 e o mesmo mês de 1967, foi o principal responsável pelas negociações com o Exército para o fim de manifestação contra a ditadura organizada por alunos do curso de direito da UFMG no prédio da escola, na Praça Afonso Arinos, Região Central da capital mineira, em 1966.
Com a recusa dos estudantes em deixar o local, o Exército cercou o prédio. A mobilização durou três dias. “Não entrava nada. De vez em quando uma cesta com alguma fruta. Lá de cima jogávamos pedras contra os militares, que nos atacavam com bombas de gás”, lembra o advogado Carlos Cateb, um dos alunos que permaneceram dentro da faculdade durante o cerco. Apesar de toda a pressão, os militares não entraram. A área em que os estudantes se concentraram para o confronto com o Exército, uma espécie de pilotis do prédio da escola, foi entregue ao Diretório Acadêmico do curso e recebeu o nome de um ex-aluno, José Carlos Novaes da Mata Machado, assassinado pela ditadura em 1973.
Paraquedistas
Cateb conta que, com o golpe em 1964, as salas do curso de direito passaram a ter policiais militares e soldados do Exército que assistiam às aulas dos professores como se fossem alunos do curso. “Nós os chamávamos de paraquedistas, por realmente serem e nunca ter prestado vestibular.
Concluído o curso, Cateb foi encarregado de organizar a formatura do grupo de alunos que se recusava a receber o diploma ao lado dos paraquedistas. “Fizemos a cerimônia, considerada não oficial, no Cine Metrópole, com a presença de aproximadamente 80 estudantes. Já os militares e outra parte dos alunos que prestaram vestibular se formaram na Reitoria.”
O histórico de Cateb dentro da escola, e também ao longo da vida profissional – o advogado trabalhou para vários presos políticos durante a ditadura –, fez com que o ex-estudante da UFMG fosse considerado pelos militares não só como “comunista” – tratamento comum a adversários do regime –, mas também como agente do governo da então União Soviética. “Uma vez, um coronel chegou a dizer que eu recebia em rublos.”
Cateb ficou conhecido no meio jurídico por usar um sistema de comunicação com os clientes que burlava a segurança e nunca foi descoberto pelos militares. Nas audiências, sempre ao lado de pelo menos dois guardas, o advogado e o preso político colocavam maços de cigarros sobre a mesa. O cliente via o maço de Cateb e na próxima audiência tinha um da mesma marca. Ambos retiravam o filtro, colocavam mensagens cifradas e voltavam com o filtro. Na outra sessão, os maços eram trocados.