Tereza Cruvinel, João Valadares e Étore Medeiros
Brasília – O ex-presidente João Goulart deixou o governo da mesma forma como o assumiu, em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros, sob a pressão dos militares que vetaram sua posse: voando de um lado para o outro, acossado pelos inimigos, traído pelos mais fortes e apoiado pelos que não tinham forças suficientes para resistir. Em 1964, entretanto, não houve acordo como em 1961 e ele acabou deposto e exilado, só retornando morto ao Brasil 12 anos depois.
Na noite de 30 de março daquele ano, contrariando alertas dos conselheiros mais próximos, o presidente compareceu ao ato pelos 40 anos da Associação de Subtenentes e Sargentos da PM, no Automóvel Club do Rio de Janeiro, onde fez seu último discurso. Pregou a observância da lei e da ordem, mas defendeu as reformas de base e um país com mais justiça social. “Assustou os civis e assustou demais os militares, que não o viam com simpatia. Assustou tanto que o general Mourão Filho antecipou o golpe. A previsão do golpe era para ocorrer dias depois. A conspiração era nesse sentido”, analisa o historiador Ronaldo Costa Couto, que, entre vários cargos de destaque na política brasileira foi secretário de Planejamento e confidente de Tancredo Neves.
Quando Jango saiu do evento no Automóvel Club, depois das 22h, recolheu-se ao Palácio das Laranjeiras. “Como presidente da República, ele era também o comandante supremo das Forças Armadas. A leitura militar foi que a presença dele ali quebrou a hierarquia e a disciplina. E esses são dois valores fundamentais na cultura militar. Então, a partir dali ficou muito difícil”, contextualiza Ronaldo Costa Couto.
O historiador conta que Tancredo lhe confidenciou que, durante a tarde, Jango ligou e leu o discurso que faria à noite. “O Tancredo estava no apartamento dele, em Copacabana. Ele fez o seguinte comentário: ‘Belo discurso, mas talvez custe a Presidência da República’. O Tancredo era um sábio político e um estrategista”, avalia.
Em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, o general Mourão Filho foi dormir cedo. Às 4h do dia 31 começou a movimentar as tropas em direção ao Rio, em conjunto com as do general Carlos Guedes, comandante em Belo Horizonte. Ao saber da sublevação, o presidente foi convencido pelo general Assis Brasil, o chefe da Casa Militar, de que o movimento de Mourão não representava perigo, seria logo sufocado. O general fora encarregado de montar um “dispositivo militar” para resistir em caso de golpe e alardeava ter um “esquema invencível”. Jango confiava. Viu-se depois que o general blefava. O ministro da Guerra de Jango, o general Jair Dantas Ribeiro, estava hospitalizado.
- Defesa pacífica
Jango dizia a todos que não queria “derramamento de sangue”. O chefe dos Fuzileiros Navais, Almirante Aragão, buscou uma ordem, que não veio, para resistir e armar o povo. O coronel Rui Moreira Lima chegou a sobrevoar a coluna golpista com um jatinho e garantiu que havia como controlar a situação. Os soldados, temendo o bombardeio, fugiram para o mato. O ataque aéreo nunca ocorreu porque Jango não autorizou. “Esse é o lado mais brilhante da biografia do Jango. Ele cometeu muitos erros, principalmente nos dias finais que antecederam o golpe, mas não aceitou uma solução de sangue para aquele impasse”, pontua Ronaldo Costa Couto.
O senador Juscelino Kubitschek seguiu até o Palácio das Laranjeiras para um encontro com Jango. A reunião ocorreu no quarto do presidente. “O Jango sentou numa cama e o JK na outra. O JK disse: ‘Jango, o movimento está em marcha, é coisa séria e você só tem uma chance de preservar o poder e continuar na Presidência”, relata o historiador. O senador enumera quatro providências. “Faça um manifesto à nação imediatamente tornando claro a repulsa ao comunismo, anuncie o ministério de perfil mais conservador, garanta anistia aos militares sublevados e, por fim, assegure a punição dos marinheiros que desafiaram a autoridade do ministro da Marinha, que deixou o cargo”.
- Traição no poder
No dia 1º, o cerco apertou para o presidente numa conversa telefônica com o chefe do 2º Exército, de São Paulo, general Amaury Kruel, que fora seu ministro da Guerra e o tinha como amigo. Para não aderir, o general exigiu a dissolução do CGT e da UNE, a prisão de seus dirigentes e a demissão do ministério, chamando-os de comunistas. “Tu sabes que não sou comunista”, disse Jango, recusando o acordo. A trair os aliados, preferia perder o mandato. Kruel aderiu ao golpe. Em fevereiro de 2014, o coronel do Exército reformado Erimá Pinheiro Moreira declarou à Comissão da Verdade de São Paulo que a Fiesp subornou Kruel com US$ 1,2 milhão para que traísse Jango.
O presidente tomou, então, um avião para Brasília. Em seu gabinete no Planalto, arrumou as gavetas conversando com três jornalistas: Fernando Pedreira (O Estado de S.Paulo), Maria da Graça Dutra (Correio Braziliense) e Flavio Tavares (Última Hora). É Flavio quem recorda, num artigo: “De pé, junto aos ajudantes de ordens, Jango nos disse no seu estilo lacônico, mas de forma tão tranquila que nos confundiu ainda mais naquela confusão: ‘Vou instalar o governo no Rio Grande do Sul’. Acabo de falar com o comandante do 3º Exército e viajo hoje para Porto Alegre”. Pelo rádio, o general Ladário Telles lhe disse de Porto Alegre. “Temos algumas dificuldades, mas venha, presidente, pois o 3º Exército resistirá a seu lado!”. Brizola, não mais governador, emendou: “Resistiremos e venceremos como em 61”.
Ele fez uma reunião com os principais aliados e todos concordaram que ele devia partir e resistir. “Na época, eu era uma criança de 7 anos, as imagens que tenho são flashes”, lembra João Vicente Goulart, filho mais velho de Jango, em entrevista à reportagem.
- Cartada final
Jango ainda voava em direção a Porto Alegre quando veio a parte civil do golpe. Numa sessão do Congresso, convocada para 1h, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, leu ofício levado por Darcy Ribeiro, chefe do Gabinete Civil, comunicando que o presidente se deslocara para o Sul, onde estaria à frente das tropas legalistas e do ministério. Mas, alegando ter ele deixado a sede do governo e a nação acéfala, emendou: “Declaro vaga a presidência da República e, nos termos da Constituição, invisto no cargo o Presidente da Câmara, Sr. Ranieri Mazzilli. Está encerrada a sessão!”. Tancredo Neves, considerado um homem pacífico e cordial, gritou três vezes: “Canalha, canalha, canalha”. A seguir, foram ao Planalto dar posse a Mazzilli. Dez dias depois, Castelo Branco foi eleito presidente pelo voto indireto dos congressistas. Em Porto Alegre, não havia mais condições para resistir. No dia 4, Jango pediu asilo ao Uruguai.