Um avião sobrevoa o Oceano Atlântico rumo ao Brasil. Passageiros da aeronave entoam versos de uma canção que fala da saudade que o marido, distante há muito tempo, sente da família e da casa. A música diz para preparar o coreto, o feijão preto, e que a cerveja seja colocada na geladeira. Os “cantores” do voo querem tudo isso, mas conseguiram muito mais. Derrotaram um regime militar autoritário, violento e agora retornam para casa. A viagem de ida, para muitos, ocorrera havia quase 10 anos. A partida foi à força, por não concordarem com o governo implantado pelos generais no país depois do golpe de 1964.
Especial sobre os 50 anos do golpe militar
“Os militares foram obrigados a anistiar. Seria uma briga que não acabaria nunca. Eles sentiam que haviam perdido a luta. Foi uma conquista da sociedade. Não fizeram por qualquer outro motivo. O governo foi obrigado a isso”, afirma Paulo César Pinheiro, autor de Tô voltando, a música cantada pelos passageiros do primeiro voo que, em setembro de 1979, logo depois da assinatura do decreto da anistia, trouxe os primeiros militantes políticos expulsos do país. A canção foi composta dois anos antes por Paulo César e Maurício Tapajós. “Foi uma emoção muito grande ver em um telejornal tantas pessoas voltando para o Brasil cantando uma música que, apesar de não ter sido feita para a ocasião, coube como uma luva naquele momento”, disse.
O historiador Roberto Ribeiro Martins relata que a discussão sobre o perdão para militares que torturaram e assassinaram militantes políticos, e também para os integrantes da resistência, começou a ser feita ainda em 1975. Roberto, que estava entre os rebeldes mandados para a cadeia pelos generais por “comunismo”, aproveitou os cerca de cinco anos em que foi prisioneiro, na segunda metade dos anos 1970, para estudar as anistias concedidas no Brasil nos quatro séculos anteriores à ditadura militar.
Ao deixar a prisão escreveu um livro, Liberdade para os brasileiros – Anistia ontem e hoje e passou a organizar manifestações a favor do fim dos processos judiciais contra o integrantes da resistência contra a ditadura militar. “Fizemos um processo de mobilização muito grande. Transformamos a Cinelândia (no Centro do Rio de Janeiro) novamente em um palco para as reivindicações no país”, lembrou Martins, baiano de Jequié, atualmente secretário de Desenvolvimento Econômico em Eunápolis, no Sul do estado.
No início do debate sobre a anistia, existiu a dúvida se o fim dos processos seria geral e irrestrito, para militares e militantes políticos. O governo conseguiu fazer com que os chamados crimes de sangue (assassinatos e atentados terroristas, como classificados pelos generais) ficassem fora da anistia. Ao final, no entanto, a anistia acabou valendo para ambos os lados de forma irrestrita. Martins, porém, não concorda com o desfecho das negociações. “Faltou a apuração dos crimes cometidos pelos militares. Faltou vontade e força política para verificar os crimes do Estado à época contra a humanidade”, analisou. “Pelo menos parte dos militares deveria ser punida, ainda que simbolicamente. Não digo para que sejam colocados na cadeia porque já estão mais velhos, mas têm que ser condenados para que isso funcione como uma vacina, evitando que ocorra novamente”, argumentou.
Somente depois de 10 anos do início das discussões sobre a anistia, em 1985, o país teve o comando novamente nas mãos de um civil, Tancredo Neves, ainda que colocado no posto em eleições indiretas realizadas pelo Congresso Nacional.
Burocracia exportada
A volta para o Brasil demorou um pouco mais para o livreiro anistiado Marco Antonio Meyer, integrante do grupo de 40 militantes políticos presos trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, sequestrado pela resistência em 1970, no Rio de Janeiro. Banido, Meyer passou quase nove anos fora do país. Quando morava em Gotemburgo, na Suécia, em 1979, tomou conhecimento da anistia. Foi ao consulado brasileiro para pedir a emissão de passaporte e voltar ao país. Não conseguiu por “falta de formulário”, conforme informado por um funcionário da representação nacional na cidade sueca. Com toda a burocracia, conseguiu chegar ao Brasil somente quatro meses depois da publicação do decreto da anistia.
Meyer foi preso depois de roubar um veículo, também no Rio de Janeiro, que seria utilizado em operações do Comando da Libertação Nacional (Colina), a organização de resistência à ditadura à qual pertencia. Levado ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), foi torturado depois de descobrirem sua atuação como líder estudantil em Belo Horizonte. Contemporâneo da presidente Dilma Rousseff no Colégio Estadual Central, Meyer começou a militância na esquerda em reuniões promovidas por padres na capital em 1961. “Para os militares éramos os ‘comunistas cabeludos que tocavam violão’”, lembrou.
No fim da década de 1960, ainda em Belo Horizonte, Meyer foi acusado pelos militares de “mexer com bombas”. “De fato, fazíamos experiências com explosivos na região de Pedro Leopoldo”, contou. Numa noite, quando chegava em casa depois da faculdade em seu carro, uma Kombi, notou a presença do que acreditou serem policiais. No momento em que entrava na garagem, deu ré e saiu em disparada. Os policiais atiraram contra o carro. Morador do Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul, dirigiu até a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no Bairro Santo Antônio, também na Região Centro-Sul da cidade. “Deixei o carro ligado dentro da escola e fugi”.
Meyer conta que pediu ajuda a uma senhora moradora do bairro. “A mulher disse para que me acalmasse e me levou para sua casa. Dormi por lá. No dia seguinte, saiu, olhou por perto, percebeu que não havia policiais e falou que eu poderia ir embora.” Depois de 10 dias se escondendo na casa de amigos, tomou um ônibus noturno para o Rio de Janeiro, onde ampliou a militância política ao passar a fazer parte do Colina.
Saudades de casa
A ideia inicial para a canção Tô voltando surgiu durante uma série de shows que Maurício Tapajós fez pelo Brasil durante o início dos anos 1960. O músico ligou para Paulo César Pinheiro (foto), seu companheiro de composições, e disse que estava com saudades de casa. “Quando Maurício chegou ao Rio de Janeiro, eu já tinha um esboço da letra. Aí foi só colocar a música”, lembrou Pinheiro. “Fui um dos caras mais censurados durante a ditadura militar. Lutei contra o regime durante todo o tempo. Meus shows eram acompanhados por agentes do Dops e da Polícia Federal na primeira fila. Ter nossa composição transformada em hino para os anistiados foi algo extraordinário”. (LA)