A historiadora Regina Helena Alves da Silva e a psicóloga Sílvia Esteves estão juntas há 10 anos e têm um casal de filhos pequenos, que são a alegria da casa. Os dois são irmãos e foram adotados há cerca de três anos. Foram retirados dos pais porque eram vítimas de violência. Hoje, fazem parte de uma família como outra qualquer ou como muitas que existem no Brasil e no mundo e que não se encaixam naquele modelo tradicional formado apenas por pai, mãe e filhos. Porém, não para o Projeto de Lei 6.583/2013, em tramitação na Câmara dos Deputados, que cria o Estatuto da Família. De acordo com o texto, são consideradas entidades familiares apenas o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher ou por apenas um dos pais e seus filhos.
Caso seja aprovado, casais homossexuais, netos criados por avós, irmãos criados sozinhos e todos os diversos tipos de unidades familiares já reconhecidas pela Justiça brasileira e por doutrinas de direito estarão à margem dessa proposta. Segundo dados do Censo Demográfico do IBGE, realizado em 2010, o modelo familiar formado por pai, mãe e filhos deixou de ser maioria no Brasil. Os novos arranjos já representam 50,1% dos lares brasileiros, contra 49,9% da formação tradicional.
O texto do estatuto em tramitação na Câmara é de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), integrante da bancada evangélica e autor do parecer favorável ao projeto de “cura gay”, do parlamentar tucano João Campos (GO), arquivado ano passado pelo Congresso após diversos protestos e manifestações. Ele justifica sua proposta alegando a “desconstrução do conceito de família no contexto contemporâneo”.
ENQUETE O projeto está sendo debatido em uma comissão especial criada na Câmara dos Deputados e já é um dos mais comentados no site da Casa. Uma enquete feita pelo portal sobre o conceito de núcleo familiar proposto pelo estatuto registra recorde de acessos. No ar desde fevereiro, já recebeu 1.130.218 votos, a maioria (61,15%) a favor da definição proposta pelo projeto, que inclui apenas famílias formadas por casais héteros.
Em entrevista à TV Câmara, o relator do projeto, o pastor e deputado federal Ronaldo Fonseca (PROS-DF), defendeu o conceito de família dado pelo estatuto e disse que ele tem respaldo na Constituição Federal, que reconhece o núcleo familiar como formado por homem e mulher ou por apenas um dos dois, em caso de morte ou separação conjugal. Segundo ele, um terceiro modelo, que é o da união homoafetiva, foi resultado de uma interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “Precisamos debater para saber o que a população quer, o que está previsto na Constituição ou o que foi criado pelo STF. Na minha convicção, a Constituição Federal está correta no que propõe para a família brasileira.”
Para ele, as minorias também têm de respeitar o direito da maioria. Um outro estatuto da família já tramitou e chegou a ser aprovado, em caráter conclusivo, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara, em 2010, mas recurso apresentado pela bancada evangélica para que o texto fosse submetido ao plenário empacou sua tramitação. Ele também ampliava o conceito de família e reconhecia todas as suas modalidades, sem exceção.
Para o presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), Rodrigo da Cunha Pereira, o projeto da Câmara pegou carona na proposta de 2010 e o distorceu. “Por isso, demos uma atualizada no texto que foi aprovado e decidimos tentar aprová-lo via Senado, por meio de uma proposta assinada pela senadora Lídice da Mata”, afirma Rodrigo.
Entidades criticam fundamentalismo
Para a assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) Fernanda Saboia, a definição proposta pelo estatuto exclui a pluralidade das famílias brasileiras. “É um projeto fundamentalista, que faz oposição tardia à decisão do Supremo Tribuna Federal, que reconheceu a união civil entre pessoas do mesmo sexo”, afirma. Segundo ela, esse conceito é conservador e não representa a doutrina de direito familiar, que já reconhece 11 tipos de família, entre elas a homoafetiva e as formadas não só pelos laços consanguíneos ou matrimoniais, mas pautadas também pelas mais diversas relações de afeto. Na avaliação de Fernanda, caso seja aprovado, o estatuto deve ser alvo de ações contestando sua constitucionalidade, pois todos são iguais perante a lei. Para ela, o projeto pode gerar insegurança jurídica a todas as famílias que não se enquadram na definição proposta pelo estatuto.
O presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABLGT), Carlos Magno, considera o projeto um retrocesso. Para ele, a restrição do conceito de família, além de temerária, “é imoral, ao fechar os olhos descaradamente e negar proteção de todas as estruturas familiares presentes na sociedade moderna”. “Não podemos ignorar que o conceito de família é cada vez mais plural, pois os núcleos criados não estão mais vinculados exclusivamente ao matrimônio, e sim aos laços de afetividade.” Segundo ele, essa nova concepção retrata uma realidade mundial, que estabelece núcleo familiar como algo abrangente, recepcionando como famílias os núcleos homoafetivos, monoparentais, as adoções, comprovação de paternidade via testes de DNA, a paternidade socioafetiva, famílias de casais inférteis, os vínculos de tutelas e curatelas e outras diversas formas de relações familiares cujo principal elo é o afetivo.
A historiadora Regina Helena diz que o texto do estatuto em tramitação na Câmara, caso seja aprovado, não vai interferir em nada na sua vida. Ela é casada há 10 anos com Sílvia Esteves e as duas têm, juntas, dois filhos.
O que dizem os projetos
PL 6.583/13, batizado de Estatuto da Família, que tramita na Câmara dos Deputados
Art. 2º – Para os fins desta lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
PLS 470/13, batizado de Estatuto das Famílias, que tramita no Senado
Art. 3º – É protegida a família em qualquer de suas modalidades e as pessoas que a integram.
Art. 4º – Todos os integrantes da entidade familiar devem ser respeitados em sua dignidade pela família, sociedade e Estado..