Brasília – O Brasil carece de um “projeto de nação”, no entender do presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Raymundo Damasceno. A pouco mais de duas semanas do debate de presidenciáveis organizado pela entidade – marcado para o próximo dia 16, em Aparecida (SP) –, o cardeal concedeu uma entrevista exclusiva aos Diários Associados e disse que não adiantam iniciativas isoladas por parte de quem está à frente do país. “Temos um problema grave: falta um projeto de nação”, disparou, evitando críticas diretas ao atual governo. Reafirmando a postura neutra da Igreja na corrida eleitoral, dom Damasceno avaliou que teve “pouco contato” com a presidente Dilma ao longo do mandato e lembrou que o eleitor é livre para fazer as próprias escolhas. “Não há acepção de pessoas”, pontuou, quando perguntado sobre se há orientação para que católicos votem em candidatos da mesma religião. “A orientação é para que se vote em sintonia com valores e princípios que defendemos”, acrescentou. O presidente da CNBB não acredita que temas como aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo tenham um peso grande nestas eleições. “Todos já sabem o que a Igreja pensa”, justificou ele, que também cobrou coerência dos “políticos de fé”. De maneira firme, dom Damasceno, amigo do papa Francisco, afirmou que a Igreja Católica não se preocupa em fortalecer bancada no Congresso Nacional. “Não precisamos dessa divisão”, sublinhou. Confira os principais trechos da entrevista, em que o cardeal também critica os padres candidatos e o desrespeito à Lei da Ficha Limpa.
A Igreja Católica, mesmo que não oficialmente, tem candidato a presidente da República?
Não. A Igreja respeita a liberdade do eleitor e convida as pessoas de fé a não terem medo da política.
Mas há preferências. Não existe um candidato que se encaixe melhor nesse perfil?
Não assumimos posição político-partidária. O que temos tentado fazer é encorajar os eleitores. Não se pode continuar com aquele pensamento de que “política é coisa de ladrão e corrupto”, “política não presta” ou “quem entra na política se corrompe”. São estereótipos que vamos repetindo e não resolvemos nada. Somos todos responsáveis pelo bem comum. Não podemos fugir dessa responsabilidade. Temos uma condição de cidadãos. Somos, portanto, essencialmente políticos.
Por que tantos padres têm se candidatado, mesmo com a posição oficial contrária da Igreja?
Diria que é uma forma de fugir do próprio ministério. E é por isso que padres não devem se candidatar: porque temos um ministério religioso a exercer, uma função muito própria. Ser político não é uma atividade compatível com a vida sacerdotal.
E, mesmo se candidatar, padre pode fazer campanha ou pedir voto?
Os templos católicos não são currais nem comitês eleitorais. Não se pode fazer política partidária nas celebrações ou nos movimentos religiosos. Claro que o padre pode e deve falar de política, dos problemas sociais que afetam as pessoas. Deve também oferecer elementos para que os fiéis façam seu discernimento, mas nunca impor ou decidir por eles.
Católico tem que votar em católico?
Não. Nossa orientação é para que se vote em sintonia com valores e princípios que defendemos. Valores cristãos, entre eles a defesa da família e da vida e o conceito de política como conceito. Isso, sim, é fundamental. Temos critérios claros que nos ajudam a escolher. Se o candidato tem bandeiras que se opõem a eles, evidentemente caberá ao católico decidir. Mas não há acepção de pessoas.
Qual será o peso, nestas eleições, de temas como aborto e casamento de pessoas de mesmo sexo?
Acredito que um peso pequeno, até porque todos já sabem a posição da Igreja e as campanhas não focam somente nesses assuntos. Mas é claro que, quando questionado, é importante que o candidato diga o que pensa. Se ele se disser favorável ao aborto, por exemplo, é evidente que os católicos já têm aí um elemento a mais para fazer a escolha. O eleitor tem que agir de maneira coerente com a fé que professa. Não se espera que ele assuma uma posição em favor de um partido ou de um candidato de valores contrários.
A Igreja teve um papel fundamental na Lei da Ficha Limpa. Ver candidatos condenados disputando as eleições não dá a impressão de “serviço pela metade”?
Muitos foram impossibilitados de entrar na corrida eleitoral por causa da lei. Está muito claro que candidatos condenados não podem participar do pleito. Um político condenado não tem nem credibilidade para se apresentar em público e pedir voto. Mas é a Justiça que deve impedi-los, não a Igreja.
Quando a Igreja se aproxima de questões políticas, ela não fere as premissas de Estado laico?
Não, porque a Igreja não pode estar confinada ao templo nem ter a sua participação na sociedade reduzida às celebrações litúrgicas. A Igreja está inserida no mundo, faz parte dele. Claro que com uma missão religiosa e espiritual bem definida, porém sem se fechar às outras dimensões do ser humano, incluindo a política.
Falta uma bancada católica mais forte no Congresso?
Não precisamos de bancada católica, não precisamos criar essa divisão. O católico, político ou não, é convidado a defender os valores cristãos, humanos e éticos onde ele estiver. A fé é um guia pessoal. Os católicos eleitos pelo povo sabem que devem agir de maneira coerente com seus princípios. Mas isso deve ocorrer de uma maneira muito natural.
Por que a Igreja perdeu peso na participação das discussões políticas do país?
Decisões políticas cabem aos políticos, não à Igreja. Estamos convictos de que os valores que defendemos são para o bem da sociedade e do povo. Não formamos bancadas para defender nossos interesses. Repito: espera-se que o político de fé exerça o mandato de maneira coerente com os seus próprios princípios. Não é para atender privilégios da Igreja.
O senhor esteve pelo menos três vezes com a presidente Dilma Rousseff ao longo do mandato dela, inclusive na semana passada. O governo Dilma agradou à Igreja?
Respeitamos todos os governos. O contato com ela foi, digamos, pouco, mas caberá ao eleitor votar e mantê-la ou não no cargo. Quem vai decidir é o cidadão, não a Igreja.
Qual o principal desafio de quem subir a rampa do Palácio do Planalto em 1º de janeiro?
Temos um problema grave: falta um projeto de nação. Qual o nosso projeto? E quais as propostas para se chegar a ele? Se não decidir isso, ficamos assim: desenvolvendo iniciativas pontuais aqui e acolá, e só. A reforma política é urgente, até para dar condições às outras reformas. Outro ponto bastante importante é que o governo mantenha uma estabilidade econômica, evitando o retorno da inflação. Também é necessário investir mais na educação.