Tema obscuro na história brasileira, a prática da tortura durante o período militar recebeu atenção especial nas investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Das 434 vítimas de morte do regime, 191 foram por execução sumária ou decorrente de torturas. A dificuldade em conseguir registros sobre o que se passava nos porões da ditadura e dos próprios sobreviventes em lidar com momentos traumáticos fizeram com que detalhes do que se passou nos 21 anos do regime militar ficassem por muito tempo esquecidos. No relatório da comissão estão descritos métodos usados para obter informações de presos políticos, que trazem à tona horrores pouco conhecidos, como o uso de presos como cobaias em aulas de tortura e a incineração de corpos de prisioneiros que não resistiram aos maus-tratos na usina de Cambahyba, no interior do Rio de Janeiro.
Dois capítulos do relatório, divulgado em 10 dezembro, tratam de casos específicos de mortes sob tortura e a constituição de um estrutura do Estado para a prática. Na primeira parte, o levantamento aborda os treinamentos recebidos por agentes brasileiros para aprender técnicas de tortura em escolas militares norte-americanas e britânicas. “Embora as Forças Armadas brasileiras ainda tratem veladamente do assunto, oficiais do Exército e da Aeronáutica mencionam em depoimentos a participação em cursos na escola norte-americana do Panamá”, diz o relatório.
Ao lado de oficiais de outros países latinos, que também viviam regimes ditatoriais, os militares brasileiros passaram períodos no exterior aprendendo técnicas para obter confissões e informações de prisioneiros.
“A metodologia da tortura se tornou um objeto de saber, um campo de conhecimento, produzido e transmitido entre os militares. Suas técnicas eram uma matéria ensinada aos membros das Forças Armadas, inclusive com demonstrações práticas, como declarados por presos políticos usados como cobaias nessas aulas”, aponta o relatório.
Entre os relatos de vítimas que serviram como cobaias está o depoimento de Dulce Pandolfi, que em 20 de outubro de 1970 foi usada para as demonstrações de técnicas a um grupo de cerca de 20 oficiais. “O professor, diante de seus alunos, fazia demonstrações com meu corpo. Enquanto levava choques elétricos, pendurada no pau de arara, ouvi o professor dizer: ‘Essa é a técnica mais eficaz’. Como comecei a passar mal, a aula foi interrompida e fui levada para a cela. A segunda parte da aula foi no pátio. Ali fiquei um bom tempo amarrada no poste, com um capuz na cabeça. Fizeram um pouco de tudo”, contou Pandolfi.
USINA DA MORTE Segundo o balanço final da Comissão da Verdade, 243 pessoas foram vítimas de desaparecimento forçado, parte delas mortas depois de longas sessões de tortura, e tiveram os corpos destruídos por militares. Um dos locais usados para o sumiço de corpos foi a Usina de Cambahyba, no interior do Rio de Janeiro.
A usina era propriedade do industrial Heli Ribeiro Gomes, vice-governador do Rio entre 1966 e 1970, que teria sido procurado por militares para emprestar alguns fornos para a incineração de presos políticos assassinados pelo regime. “No período de 1974 e 1975, na mudança da política americana, começou uma pressão muito grande em cima do governo brasileiro por causa do desaparecimento de corpos. Os coronéis que estavam no comando queriam um meio para fazer (os corpos) desaparecer mesmo. Então, foi dada essa ideia de incinerar os corpos. Foi então mudado o sistema”, explicou Guerra.
Segundo o ex-delegado, as vítimas que não resistiam às torturas ou que foram sumariamente executadas eram retiradas da Casa da Morte durante a noite em sacos pretos e levadas até a usina. “Apresentei o Heli, então vice-governador, para o comandante. Sabia que eles queriam sumir com os corpos. Outras usinas da região pertenciam a grupos de empresários, mas Cambahyba era só dele.