A noite em que o Brasil não dormiu

Há 30 anos, Sarney tomava posse como primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura

Político substituía Tancredo, que adoeceu na véspera e deixou o país em suspense ao longo da madrugada

Jorge Macedo - especial para o EM
Bertha Maakaroun

Manifestação no Congresso Nacional em comemoração à posse de Sarney (E). População homenageou Tancredo, que foi hospitalizado na noite anterior e não pôde tomar posse - Foto: F. Gualberto/CB DA Press

Após 20 anos de uma sucessão de generais no comando do Palácio do Planalto, a sociedade civil estava a poucas horas de dar mais um importante passo para assumir o poder político. Sua cabeça martelava: era preciso concluir a transição democrática. Na véspera da posse, entretanto, em 14 de março de 1985, às 22h15, Tancredo Neves, presidente da República eleito pelo Colégio Eleitoral em janeiro daquele ano, chegou ao Hospital de Base, em Brasília. Há dois dias as dores abdominais intermitentes se intensificaram. Os exames de sangue mais recentes apontavam para um quadro infeccioso agudo. Não só para o homem Tancredo, mas para o país, que um ano antes fora às ruas pedir Diretas-Já, iniciava-se a mais longa noite do amanhecer da Nova República.

O mal-estar físico de Tancredo Neves começara 15 dias antes. Ia e vinha. Desinformado de que corria contra o tempo pela vida, empurrava a ideia da cirurgia.

“Tancredo receava que Figueiredo não desse posse a José Sarney. Havia ruídos de setores radicais buscando brechas para interromper o processo de transição”, revela o neto e senador Aécio Neves (PSDB), então secretário particular do presidente eleito. O último general presidente da República, João Figueiredo, nutria profundo rancor por Sarney. O vice de Tancredo, cristão-novo no PMDB, era considerado por muitos militares “traidor” do regime. Ex-Arena, ex-PDS, egresso da Frente Liberal, Sarney filiara-se ao PMDB para formar com Tancredo a chapa presidencial da chamada Aliança Democrática, vitoriosa no Colégio Eleitoral em janeiro de 1985.

Sarney comemora sua posse de mãos dadas a Ulysses Guimarães e outros políticos em Brasília - Foto: Gilberto Alves/CB DA Press

Foi quando chegou com a família à Granja do Riacho Fundo, por volta das 20h da véspera da posse, logo depois da missa solene celebrada no Santuário D. Bosco, que o quadro do presidente eleito se deteriorou. Tancredo começou a passar muito mal. “Estávamos jantando. Ele largou os talheres e foi para o quarto”, conta Aécio, que correu para chamar os médicos. “Demorei mais de uma hora para localizá-los”, explica, referindo-se ao fato de que os médicos estavam tranquilos e não esperavam um chamado de emergência. Em seu quarto, um Tancredo debilitado, dirigiu-se ao secretário particular: “Onde estão os atos ministeriais?”, perguntou-lhe. “O chefe do gabinete Civil, José Hugo Castello Branco, havia deixado comigo esses atos de nomeação ministerial para publicação no Departamento de Imprensa Nacional. O presidente eleito estava trêmulo.
Até a chegada dos médicos, teve tempo de ler um a um, efetivando cada nome, em um ato político da transição muito importante”, lembra Aécio.

No momento em que Tancredo foi recebido no Hospital de Base de Brasília, Ulysses Guimarães, ícone da oposição à ditadura militar e da transição democrática – que havia sido eleito presidente da Câmara dos Deputados duas semanas antes – participava de jantar solene de confraternização com Mário Soares, então primeiro-ministro de Portugal, oferecido na embaixada portuguesa. Ali estava a cúpula e a bancada federal peemedebista. Foi Fernando Lyra, que seria nomeado ministro da Justiça, quem recebeu o telefonema de Aluízio Alves, indicado pelo presidente eleito para o Ministério da Administração. “Tancredo acaba de ser internado. Estou no Hospital de Base”, conta Pimenta da Veiga (PSDB), então líder do PMDB. “Ficamos atônitos, preocupadíssimos”, afirma ele.

- Foto: Gilberto Alves/CB DA PressUlysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso e Pimenta da Veiga deixaram a embaixada de Portugal e tomaram o rumo do Hospital de Base. De outro canto da capital chegava Sarney, também informado. A notícia corria. José Hugo Castello Branco apareceu na sequência. Numa sala do hospital ao lado da suíte em que estava Tancredo, iniciou-se o debate.
“A discussão era: se operasse, não tomaria posse. Como precisava operar, quem assumiria, o vice Sarney ou o presidente da Câmara, Ulysses? Ambos respondiam, apontando um para o outro: é você”, discorre Pimenta da Veiga. A sugestão veio do general Leônidas Pires Gonçalves, futuro ministro do Exército, o primeiro convidado para compor o governo da Nova República. “O general fez, com tranquilidade, uma pergunta singela: o que diz a Constituição?”, continua Pimenta da Veiga.

Ulysses começou a recitar o texto de cabeça, mas, antes de concluí-lo, pediu que abrissem a Constituição. O exemplar saiu do bolso de José Hugo Castello Branco. Por paradoxal que fosse – a consulta era feita à Emenda 1, promulgada em 1969, elaborada pela Junta Governativa Provisória, que assumira o poder após a trombose cerebral do general presidente Arthur da Costa e Silva. Estava em vigor a Carta de 1969. “Ficou claro que a posse deveria ser dada ao vice-presidente eleito José Sarney. Tancredo manifestou a Ulysses naquela noite a mesma opinião”, revela José Augusto Ribeiro, jornalista e assessor de imprensa de Tancredo Neves da campanha presidencial ao Colégio Eleitoral iniciada em agosto de 1984. Após 15 anos de pesquisas, Ribeiro acaba de lançar o livro Tancredo Neves, a noite do destino. Naquela mesma noite, em outra das inúmeras reuniões, o jurista Afonso Arinos faria uma conclamação definitiva: “Sob o ponto de vista político e constitucional, Sarney foi eleito vice-presidente do Brasil, não vice-presidente de Tancredo. Portanto, ele toma posse como presidente”.

Jurista Novos problemas surgiam. Um deles vinha da base paulista de sustentação ao governo da Nova República. Em ebulição e contrariamente ao entendimento do próprio Ulysses Guimarães, havia discordância com a posse de José Sarney. Queriam Ulysses. Para resolver este caso, um dos baldes de água foi lançado pelo próprio presidente da Câmara. Quando indagado por que aceitara e defendera a posse de Sarney tão rapidamente, Ulysses retrucou: “O Sarney chega aqui ao lado do seu jurista. Esse jurista é o ministro do Exército. Se eu não aceito a tese do jurista, a crise estava armada’’, retrucou ele.

Restava ainda acalmar o irritado general presidente. “O futuro ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves nos havia dito, assim que chegara ao hospital: não se preocupem com a minha área, está tudo em paz”, lembra Pimenta da Veiga. Mas a indisposição de Figueiredo com a possibilidade da posse de Sarney era grande. Segundo José Augusto Ribeiro, o desagrado de Figueiredo chegava a Francisco Dornelles (PP), hoje vice-governador do Rio de Janeiro, na ocasião secretário da Receita Federal de Figueiredo. Sobrinho de Tancredo, ele já fora anunciado como futuro ministro da Fazenda. “E quem informava Dornelles era o chefe da Casa Civil de Figueiredo, Leitão de Abreu, um importante interlocutor da Aliança Democrática”, continua Ribeiro.

Para conversar com o chefe da Casa Civil de Figueiredo, Leitão de Abreu, foram Ulysses, Fernando Henrique Cardoso e o general Leônidas Gonçalves Pires. “Muito perturbado, Figueiredo chegara a sugerir a Walter Pires o recurso à força militar para impedir a posse de Sarney”, afirma Ribeiro. O arroubo entrou para o anedotário da Nova República graças à indiscrição de Leitão de Abreu, que teria alertado Walter Pires: “O senhor não pode praticar atos como ministro do Exército desde a manhã de hoje, quando o Diário Oficial circulou com sua exoneração antecipada, como estava combinado”.

Agonia Pelos corredores do Hospital de Base o movimento continuava intenso. Outra parte dos quadros da Nova República – Aureliano Chaves, Affonso Camargo, Marco Maciel e Humberto Lucena, além de dezenas de deputados médicos, em pequenos círculos, continuavam o debate sucessório. A família, apreensiva, aguardava a sinalização da equipe médica. Por volta das 23h, Francisco Dornelles foi escalado para acalmar Tancredo. “Dornelles disse-lhe que não haveria problema com a posse de Sarney. O presidente eleito, então, assentiu: se está garantido, podem fazer o que quiserem”, revela José Augusto Ribeiro.

A todos, os médicos afirmavam que em dois ou três dias Tancredo teria alta. Estavam errados. Ali se abria uma longa madrugada de uma agonia sem volta. Na manhã seguinte, 15 de março de 1985, a posse de José Sarney inaugurou o primeiro governo civil do mais longo e estável período democrático brasileiro. Sarney recebeu de um funcionário do Palácio do Planalto a faixa presidencial. Figueiredo saiu pelos fundos.

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