Um sinal de esperança, a justiça que chegou tarde, o receio de mais uma promessa. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no último dia 25, que obriga União, estados e municípios a quitar todas as dívidas com precatórios até 2020, causou diferentes reações em quem está na longa espera pelo pagamento. Entre a dúvida da eficácia da medida e a confiança de, finalmente, pôr as mãos no dinheiro, estão milhares de pessoas, cheias de sonhos a realizar, mas há anos sem alimentar expectativas de receber um tostão. Somente em Minas Gerais, se consideradas as dívidas do estado e dos municípios, mais de 17 mil precatórios, que somam R$ 4,7 bilhões, deverão ser quitados no horizonte de cinco anos.
“Essa medida acenou com metade da nossa esperança. Se for respeitada, houve passo a frente, mas achamos o prazo de cinco anos exagerado. Já aguardamos o pagamento há 20 anos”, diz a coordenadora do Fórum Permanente Cláudio Vilaça, Marly Moysés Silva Araújo. O grupo, que defende direito de servidores públicos, tem forte atuação na área de precatórios.
Segundo a coordenadora, a expectativa era de que o STF também apresentasse alternativas para que União, estados e municípios consigam quitar a dívida. Uma das propostas defendida pelo grupo é a adoção do modelo aplicado no estado do Rio de Janeiro, onde o pagamento de precatórios usa parte do saldo dos depósitos judiciais e extrajudiciais de ações que envolvem o estado.
O fórum reúne milhares de servidores públicos estaduais que tiveram gratificações cortadas em 1995, pelo então governador Eduardo Azeredo (PSDB). Somente Marly, aposentada da Secretaria de Estado de Educação, espera receber em torno de R$ 800 mil. “A vida da gente ficou muito mais apertada sem essas gratificações. Quero receber aquilo que me cabia por direito”, reforça a coordenadora. Ela destaca que muitos morreram sem ver a cor do dinheiro e outros, na urgência de receber, chegaram a negociar precatórios por menos da metade do valor.
Impunidade Para a advogada Nazaré Abreu, de 74 anos, que tem precatório a receber desde 2008, a decisão do STF é um alento. “Estamos esperançosos de vislumbrar esse pagamento em um horizonte”, afirma Nazaré, aposentada do governo do estado desde 1995, quando começou a batalha judicial. “É frustrante não ter a contraprestação devida de uma decisão judicial. É uma situação de impunidade”, afirma. Além de encurtar o prazo para pagamentos atrasados de precatórios, a decisão do STF mudou o índice de correção da Taxa Referencial (TR) para o Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E). A mudança foi considerada vantajosa para os credores. Para conseguir cumprir a decisão, o governo do estado e prefeituras terão que duplicar os pagamentos anuais a partir do ano que vem.
Uma dívida de batalhas
Há 7 anos, quando o pai morreu, a advogada Stella Bastianetto, de 70 anos, passou por um aperto financeiro “municipal, estadual e federal”. A situação a fez negociar seus precatórios com uma empresa por apenas 32% do valor total, que, na época, somava mais de R$ 400 mil. “Estava tudo certo para eu vender, mas veio a crise de 2008 e a pessoa desistiu de comprar. Graças a Deus”, conta. Hoje, ela agradece pelo negócio frustrado, porque, com a decisão do STF, finalmente, tem a esperança de receber o dinheiro do estado.
Stella soma 15 anos de batalhas judiciais para tentar embolsar o precatório, referente a gratificações do período em que foi diretora na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag). A causa pessoal a motivou, inclusive, a advogar na área. Nesse período, participou de reuniões, fez abaixo-assinados e foi até a Assembleia Legislativa cobrar o pagamento. O dinheiro foi incluído no orçamento do estado de 2004, mas nunca chegou. “Sou otimista. Prefiro acreditar que agora vai”, diz.
Solteira e sem filhos, ela volta a alimentar sonhos de se aposentar depois de 52 anos de carreira, viajar para o exterior e viver com mais folga. “Já não sei quanto tenho a receber, mas vai mudar muito minha qualidade de vida. Vai me dar uma segurança”, diz Stella, cansada do imbróglio. “Nunca queira ser credora de precatório. É triste. Clientes meus morreram esperando esse dinheiro”, conta.
Loteria de quatro décadas
Imagine ter um bilhete de loteria premiado há 40 anos e jamais ter recebido um centavo. É mais ou menos essa a sensação da família Freitas, que, em vez do bilhete, tem nas mãos precatório que beira os R$ 27 milhões. A dívida se refere a um terreno, em Montes Claros, comprado na década de 1950 pelo patriarca Joaquim Fidêncio de Freitas, morto em 1996, aos 93 anos. O loteamento foi invadido, virou bairro e a família jamais foi indenizada. Desde 1976, começou a luta na Justiça e, em 1995, saiu o precatório obrigando a prefeitura a pagar.
“Nós não temos Justiça”, protesta Laert Paulo da Silva Freitas, de 84, advogado do processo e um dos 11 filhos de Joaquim Fidêncio. Até a intervenção no município, pedindo o afastamento do prefeito, Laert já conseguiu no tribunal, mas a decisão nunca foi cumprida. A família também chegou a detalhar a representantes da prefeitura formas de pagar a dívida. “Nossos pais e dois irmãos morreram, e o precatório ainda não foi pago”, lamenta.
A dura saga da família de classe média atrás dos direitos faz qualquer notícia sobre o assunto soar com desconfiança, como a decisão do STF que obriga entes públicos a quitar débitos de precatórios até 2020. “Já escutamos muita promessa como essa”, comenta a caçula, Nívia Freitas, de 69. Mas nem por isso a família, que, no último cálculo, feito no Natal, tinha 117 integrantes, deixa de sonhar. “Só que, aos 84 anos, não penso mais em mim, mas nas minhas filhas”, afirma Laert.
Frustação e esperança
“Sempre passei muito sufoco”, conta o servidor público aposentado Adolfo Garrido, de 66 anos, pai de três filhos, todos criados. A ironia da história é que, apesar da vida com dinheiro curto, Garrido, credor de precatório, tem mais de R$ 1 milhão a receber do estado, dívida da época em que trabalhou no Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER-MG). Desde 1995, ele luta para embolsar a quantia e, há 11 anos, viu seu precatório ser incluído nos pagamentos do orçamento do estado. “Recebi pequena parcela em 2010, por causa da idade”, diz.
Em 20 anos, o aposentado, que continua a trabalhar numa cooperativa, resiste como pode. “Sempre estou acompanhando o quanto (empresas e governo) estariam dispostos a pagar no meu precatório, mas não aceito menos que 70%. Muitos amigos meus, doentes e idosos, tiveram que vender por valor muito baixo. Uma vez o governo fez um leilão oferecendo 50%. É muita injustiça”, diz.
Depois de tantos problemas envolvendo o precatório, Garrido não chega a comemorar a decisão do STF, mas confessa que ela o deixou “um pouco mais esperançoso”. Enquanto o dinheiro não vem, a frustração permanece. “Poderia ter parado de trabalhar e ido curtir a vida. Poderia ter feito viagens com a minha mulher, que já está aposentada. Mas eu tenho que trabalhar”, afirma.
Saiba mais
Precatório
O precatório é uma requisição de pagamento expedida pela Justiça a entes públicos – União, estados e municípios. A cobrança é feita em favor de pessoas que têm direito de receber dívidas públicas. Esse documento obriga o ente público a incluir o valor constante na condenação em seu orçamento anual.