Quando, na madrugada de 15 de março, à 1h10, após horas de tumulto no Hospital de Base de Brasília, os médicos abriram o peritônio do presidente eleito Tancredo Neves não acharam um “apêndice supurado” indicado pelo diagnóstico inicial. Este estava em perfeito estado. “Não havia infecção, nem risco de morte”, diz o pesquisador Luis Mir. Diferentemente, foi encontrado um leiomioma infectado, que crescia para fora do tubo intestinal. “Era um tumor primário, não tinha abscesso, não contaminava a parede abdominal, não tinha metástase, não estava em fase de crescimento agressivo.” Em bom português: o leiomioma não representava risco de morte, não exigia operação de urgência e poderia – como seria o mais indicado - ser retirado em cirurgia programada.
A operação foi conduzida por Francisco Pinheiro Rocha e durou um hora e 35 minutos. Luis Mir assim descreve o momento em que o cirurgião-chefe encontrou a massa tumoral que bloqueava a fossa ilíaca direita (uma das nove divisões da anatomia de superfície da parede abdominal): “É um divertículo de Meckel, graças a Deus!”. Segundo Mir, os médicos se abraçaram e comemoraram. O presidente poderia tomar posse em poucos dias. Durante a cirurgia, contudo, ao observar “o achado”, Gustavo Ribeiro, cirurgião convidado por Pinheiro Rocha para acompanhar a operação, alertou: era um leimioma. Pinheiro Rocha manteve o curso do procedimento cirúrgico adequado para divertículo.
O tumor que o cirurgião-chefe, considerado hábil nas cirurgias de estômago, baço e vias biliares, acreditou ser “divertículo” foi removido com uma técnica denominada ressecção em cunha, considerada inadequada para o leiomioma, muito vascularizado. “Quando utilizada nesses casos, a ressecção em cunha implica risco muito alto de pegar um vaso na sutura e é grande a probabilidade de o paciente sangrar. Foi o que aconteceu”, explica Mir. A sutura malfeita viria a provocar sangramento desde o primeiro momento. O quadro se agravaria até a morte.
Em 20 de março, a segunda cirurgia. Nela já estava presente Henrique Walter Pinotti, do Instituto do Coração (Incor). “Foi uma laparotomia branca, com o diagnóstico equivocado de obstrução do intestino, o que provocou grande estresse ao paciente. O pós-operatório foi também calamitoso”, afirma Luis Mir. “Ao mesmo tempo, o sangramento da sutura da primeira operação, que poderia ter sido, mas não foi, corrigido nesta segunda cirurgia, acabaria em hemorragia catastrófica”, afirma o pesquisador.
A promessa médica de alta e consequente posse permeou os primeiros dias do pós-operatório da primeira e segunda cirurgias. O seu anúncio à família e à imprensa tornara-se uma obsessão médica. Apesar das sérias complicações, os boletins oficiais não indicaram a gravidade do caso. Em 25 de março, pouco mais de três horas depois de ter sido divulgada uma foto “montada” que mostrava ao país a “recuperação” de Tancredo Neves para a sonhada posse, o presidente teve uma nova hemorragia, desta vez maciça. “Ele evacuou cerca de 3 litros de sangue vivo em menos de 12 horas. Pela quarta vez, quase morreu. A primeira havia sido na extubação da primeira operação; a segunda, numa crise respiratória gravíssima em 17 de março; a terceira em 23 de março, quando a hemorragia se tornou franca”, considera Luis Mir. Em 26 de março, Tancredo Neves foi transferido para o Instituto do Coração (Incor). Num avião sem recursos, ele recebeu várias bolsas de sangue durante o voo.
“Eu não merecia isso”, foi uma das frases que Tancredo Neves pronunciou e foi ouvida por vários médicos, ao se dar conta de que não escaparia. Em 12 de abril, no Incor, o primeiro presidente civil prometido para pôr fim à ditadura militar foi sedado definitivamente e se tornou um paciente terminal. Nove dias depois, o assessor de imprensa, Antonio Britto, anunciou ao país a morte de Tancredo.