Em meados do século XX, viver da arte, da diversão e do entretenimento no Brasil era, literalmente, caso de polícia. Um testemunho precioso desse período são as fichas e prontuários do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), armazenados no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. Parte dessa história é resgatada no projeto Obscuro Fichário de Artistas Mundanos, que traz à tona verbetes de pessoas registradas como artistas pelo Dops entre 1934 e 1954. Cantores, atores, artistas circenses e até empreendimentos artísticos e estabelecimentos comerciais ligados à área foram acompanhados de perto pela máquina policial e repressiva da época.
O projeto foi idealizado pela jornalista e produtora cultural Clarice Hoffmann, que entrou em contato com esse material pela primeira vez ainda em 2004, como pesquisadora contratada para colher material para o livro História das mulheres guerreiras no Brasil. “Na época o acervo era fechado, mas foi a partir de uma indicação que ouvi falar de um fichário do Dops que continha nomes de artistas. Também cresci ouvindo a história de que minha avó, cujo nome artístico era Gusta Gamer, tinha sido fichada, no Rio de Janeiro, por ser atriz. Ocasionalmente, o fichário me vinha à cabeça, mas só recentemente decidi retomá-lo, pois queria estar em um projeto do qual realmente gostasse muito”.
O projeto tem quatro etapas e está, atualmente, em sua primeira fase, que está prevista inicialmente para durar até o fim do ano: a de pesquisa e sistematização do material presente no acervo do DOPS em Pernambuco, em cruzamento com consultas a jornais da época para obter mais informações sobre os fichados. A segunda etapa é o lançamento do site, com previsão para o início do segundo semestre. A terceira etapa é uma convocatória para que artistas inscrevam projetos inspirados na documentação encontrada. A ideia é que esses trabalhos sejam feitos em mídias digitais para alimentar o site, que também vai estar aberto a novas informações sobre os artistas fichados pelo DOPS. A quarta etapa compreende o lançamento desses trabalhos artísticos, duas palestras, uma em São Paulo e outra no Recife, além do lançamento do catálogo. O projeto tem como assessor histórico o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, historiador da UFRN e como pesquisadores convidados o professor Alexandre Figueirôa, do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), e Marcília Gama, professora do departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (Ufrpe).
Uma das dificuldades da pesquisa, aprovada pelo Itaú Cultural e pelo Funcultura, é a incompletude das informações. O fichário tem apenas os nomes de artistas de M a Z. A parte que continha os verbetes de A a L, com mais de 700 fichas, se perdeu. “Primeiro, as pessoas eram classificadas somentes como artistas e, depois, começou uma especificação maior, registrando as pessoas como cantores e atores, por exemplo”, detalha Clarice. Para tentar recuperar mais informações, a equipe do projeto procurou os nomes dos cônjuges em outras fontes de informação. Esses dados também foram verificados em periódicos da época como o Diário da Manhã, o Jornal Pequeno e A Provincia. O Diario de Pernambuco também vai se tornar uma das fontes de material.
De acordo com Clarice, a intenção, com o projeto, é fazer uma homenagem a esses artistas e mostrar como o acervo do Dops conta tanto a história da repressão policial quanto da vida artística do Recife nos anos 30, 40 e 50. “O que nos interessa é que as pessoas acessem a documentação. O que se lê nas fichas e prontuários é a versão da polícia, não necessariamente a verdade. Queremos lembrar essas pessoas que estavam à margem do moral e do poder da época”.
DADOS
- Foram encontradas 404 fichas de artistas do período entre 1934 e 1954. Ao todo, são 14 mil prontuários dessa época
- 60% das fichas são de mulheres
- Aproximadamente 40% dos fichados eram estrangeiros – argentinos, cubanos, russos, franceses, húngaros e mais uma dezena de outras nacionalidades
- A maioria dos artistas estava em trânsito. Nomes de hotéis, pensões, endereços de casas de cômodos e, muitas vezes, do próprio local de trabalho constam nas fichas como “local de residência"
- Em aproximadamente 25% das fichas, consta como procedência o Rio de Janeiro, na época capital do país
Sixto Argentino Gallo, o menor homem do mundo
“Fichado pela Delegacia de Ordem Social e Política de Pernambuco, Sixto Argentino Gallo era uma das 200 atrações do Circo Hispano-Americano armado em 1950, no Parque 13 de Maio, no centro do Recife. De acordo com anúncio e nota publicados no Diário da Manhã, o Circo Hispano-Americano, em turnê pelas Américas, chegava para apresentar o mais moderno espetáculo circense já visto na capital pernambucana. Entre números inteiramente desconhecidos da plateia local estavam Richard e suas leoas africanas, o cavalo Sultão, os 4 Diabos do Ar, realizando o cruzamento da morte, os bailarinos excêntricos Adolfo e Natálio e os Irmãos Gallo, os menores homens do mundo”.
Rita Gouillaux, bailarina e contorcionista
"A documentação encontrada no Fundo DOPS-PE sobre a bailarina e contorcionista Rita Helene Gouillaux revela uma das táticas usualmente adotadas por diversos personagens do Obscuro Fichário para escapar do controle das Delegacias de Ordem Política e Social existentes em diversos estados brasileiros. Entre os documentos analisados no prontuário criado para a artista, há um ofício enviado no dia 15 de junho de 1943 pelo delegado da DOPS de Minas Gerais solicitando com urgência à polícia de Pernambuco informações a seu respeito. Nele, fica evidente as dúvidas sobre a real identidade de Rita, que nem sempre declarava aos investigadores os mesmos dados. Na documentação produzida pelas duas DOPS, ora ela aparece como francesa, ora como italiana, algumas vezes solteira, outras casada, em alguns momentos como doméstica e em outros artista, sem falar no uso de diferentes nomes. Jacque Line Rolland foi um deles"
Dalva de Oliveira, cantora
"Entre as estrelas da música brasileira fichadas pela Delegacia de Ordem Social e Política de Pernambuco, está Dalva de Oliveira. Ao lado de Herivelto Martins e Nilo Chagas, a cantora formava o Trio de Ouro, contratado para se apresentar em março de 1948 na Rádio Clube de Pernambuco, a famosa P.R.A. 8. Na ocasião, além de Dalva, Nilo também foi fichado pela DOPS/PE. Quanto a Herivelto, não é possível afirmar o mesmo. O Obscuro Fichário é composto apenas por verbetes de artistas cujo primeiro nome se inicia entre as letras M e Z. Em algum momento difícil de precisar mais de 700 fichas foram perdidas"
+Curiosidades
A máquina de repressão do DOPS registrava coisas curiosas, como o cardápio bilíngue do Restaurante Leite, na época, ainda batizado com o nome de seu fundador, o português Manoel Leite. Além disso, há a tentativa de fundação da Tamoio Filmes, empresa formada por operários, entre 1944 e 1946. O prontuário conta com 12 documentos, entre ficha cadastral de associados e lista de presença de assembleias. Segundo os investigadores, o empreendimento estava fadado ao fracasso por “não dispor de elementos de nível intelectual ao menos medíocre”.
+Contribuição
A equipe do projeto Obscuro Fichário está aberta ao envio de mais material sobre pessoas, locais ou atividades que tenham a ver com a pesquisa. Quem tiver mais informações, pode entrar em contato pelo blog www.obscurofichario.com.br, pelo email obscurofichario@gmail.com ou pelo Facebook, em www.facebook.com/obscurofichario. No blog, está disponível a lista com nomes pesquisados. Entre os estabelecimentos que precisam de mais dados, estão o Cassino Império, o Cine Siri, o Cineclube Charles Chaplin, o Circo-Teatro Sá, o Teatro de Variedades da Festa da Mocidade, o Taco de Ouro e o Imperial Cassino.
+Arquivo Público
O local onde os arquivos estão é o Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, localizado no bairro de Santo Antônio e apoiador institucional do projeto. Os documentos referentes ao DOPS no Estado foram encaminhados para lá em 1991. “São aproximadamente 145 mil fichas e cerca de 70 mil prontuários. É o segundo maior acervo do país. Se colocássemos nossos documentos em linha reta, teríamos 13 quilômetros”, afirma o coordenador geral do APEJE, Pedro Moura. Isso equivale à distância entre os centros de Recife e Camaragibe. Os itens se referem a documentos, periódicos, jornais, manuscritos, fotografias e à hemeroteca. O material está disponível totalmente ao público desde a sanção da Lei de Acesso à Informação, em 2011.
O projeto foi idealizado pela jornalista e produtora cultural Clarice Hoffmann, que entrou em contato com esse material pela primeira vez ainda em 2004, como pesquisadora contratada para colher material para o livro História das mulheres guerreiras no Brasil. “Na época o acervo era fechado, mas foi a partir de uma indicação que ouvi falar de um fichário do Dops que continha nomes de artistas. Também cresci ouvindo a história de que minha avó, cujo nome artístico era Gusta Gamer, tinha sido fichada, no Rio de Janeiro, por ser atriz. Ocasionalmente, o fichário me vinha à cabeça, mas só recentemente decidi retomá-lo, pois queria estar em um projeto do qual realmente gostasse muito”.
O projeto tem quatro etapas e está, atualmente, em sua primeira fase, que está prevista inicialmente para durar até o fim do ano: a de pesquisa e sistematização do material presente no acervo do DOPS em Pernambuco, em cruzamento com consultas a jornais da época para obter mais informações sobre os fichados. A segunda etapa é o lançamento do site, com previsão para o início do segundo semestre. A terceira etapa é uma convocatória para que artistas inscrevam projetos inspirados na documentação encontrada. A ideia é que esses trabalhos sejam feitos em mídias digitais para alimentar o site, que também vai estar aberto a novas informações sobre os artistas fichados pelo DOPS. A quarta etapa compreende o lançamento desses trabalhos artísticos, duas palestras, uma em São Paulo e outra no Recife, além do lançamento do catálogo. O projeto tem como assessor histórico o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, historiador da UFRN e como pesquisadores convidados o professor Alexandre Figueirôa, do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), e Marcília Gama, professora do departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (Ufrpe).
Uma das dificuldades da pesquisa, aprovada pelo Itaú Cultural e pelo Funcultura, é a incompletude das informações. O fichário tem apenas os nomes de artistas de M a Z. A parte que continha os verbetes de A a L, com mais de 700 fichas, se perdeu. “Primeiro, as pessoas eram classificadas somentes como artistas e, depois, começou uma especificação maior, registrando as pessoas como cantores e atores, por exemplo”, detalha Clarice. Para tentar recuperar mais informações, a equipe do projeto procurou os nomes dos cônjuges em outras fontes de informação. Esses dados também foram verificados em periódicos da época como o Diário da Manhã, o Jornal Pequeno e A Provincia. O Diario de Pernambuco também vai se tornar uma das fontes de material.
De acordo com Clarice, a intenção, com o projeto, é fazer uma homenagem a esses artistas e mostrar como o acervo do Dops conta tanto a história da repressão policial quanto da vida artística do Recife nos anos 30, 40 e 50. “O que nos interessa é que as pessoas acessem a documentação. O que se lê nas fichas e prontuários é a versão da polícia, não necessariamente a verdade. Queremos lembrar essas pessoas que estavam à margem do moral e do poder da época”.
DADOS
- Foram encontradas 404 fichas de artistas do período entre 1934 e 1954. Ao todo, são 14 mil prontuários dessa época
- 60% das fichas são de mulheres
- Aproximadamente 40% dos fichados eram estrangeiros – argentinos, cubanos, russos, franceses, húngaros e mais uma dezena de outras nacionalidades
- A maioria dos artistas estava em trânsito. Nomes de hotéis, pensões, endereços de casas de cômodos e, muitas vezes, do próprio local de trabalho constam nas fichas como “local de residência"
- Em aproximadamente 25% das fichas, consta como procedência o Rio de Janeiro, na época capital do país
Sixto Argentino Gallo, o menor homem do mundo
“Fichado pela Delegacia de Ordem Social e Política de Pernambuco, Sixto Argentino Gallo era uma das 200 atrações do Circo Hispano-Americano armado em 1950, no Parque 13 de Maio, no centro do Recife. De acordo com anúncio e nota publicados no Diário da Manhã, o Circo Hispano-Americano, em turnê pelas Américas, chegava para apresentar o mais moderno espetáculo circense já visto na capital pernambucana. Entre números inteiramente desconhecidos da plateia local estavam Richard e suas leoas africanas, o cavalo Sultão, os 4 Diabos do Ar, realizando o cruzamento da morte, os bailarinos excêntricos Adolfo e Natálio e os Irmãos Gallo, os menores homens do mundo”.
Rita Gouillaux, bailarina e contorcionista
"A documentação encontrada no Fundo DOPS-PE sobre a bailarina e contorcionista Rita Helene Gouillaux revela uma das táticas usualmente adotadas por diversos personagens do Obscuro Fichário para escapar do controle das Delegacias de Ordem Política e Social existentes em diversos estados brasileiros. Entre os documentos analisados no prontuário criado para a artista, há um ofício enviado no dia 15 de junho de 1943 pelo delegado da DOPS de Minas Gerais solicitando com urgência à polícia de Pernambuco informações a seu respeito. Nele, fica evidente as dúvidas sobre a real identidade de Rita, que nem sempre declarava aos investigadores os mesmos dados. Na documentação produzida pelas duas DOPS, ora ela aparece como francesa, ora como italiana, algumas vezes solteira, outras casada, em alguns momentos como doméstica e em outros artista, sem falar no uso de diferentes nomes. Jacque Line Rolland foi um deles"
Dalva de Oliveira, cantora
"Entre as estrelas da música brasileira fichadas pela Delegacia de Ordem Social e Política de Pernambuco, está Dalva de Oliveira. Ao lado de Herivelto Martins e Nilo Chagas, a cantora formava o Trio de Ouro, contratado para se apresentar em março de 1948 na Rádio Clube de Pernambuco, a famosa P.R.A. 8. Na ocasião, além de Dalva, Nilo também foi fichado pela DOPS/PE. Quanto a Herivelto, não é possível afirmar o mesmo. O Obscuro Fichário é composto apenas por verbetes de artistas cujo primeiro nome se inicia entre as letras M e Z. Em algum momento difícil de precisar mais de 700 fichas foram perdidas"
+Curiosidades
A máquina de repressão do DOPS registrava coisas curiosas, como o cardápio bilíngue do Restaurante Leite, na época, ainda batizado com o nome de seu fundador, o português Manoel Leite. Além disso, há a tentativa de fundação da Tamoio Filmes, empresa formada por operários, entre 1944 e 1946. O prontuário conta com 12 documentos, entre ficha cadastral de associados e lista de presença de assembleias. Segundo os investigadores, o empreendimento estava fadado ao fracasso por “não dispor de elementos de nível intelectual ao menos medíocre”.
+Contribuição
A equipe do projeto Obscuro Fichário está aberta ao envio de mais material sobre pessoas, locais ou atividades que tenham a ver com a pesquisa. Quem tiver mais informações, pode entrar em contato pelo blog www.obscurofichario.com.br, pelo email obscurofichario@gmail.com ou pelo Facebook, em www.facebook.com/obscurofichario. No blog, está disponível a lista com nomes pesquisados. Entre os estabelecimentos que precisam de mais dados, estão o Cassino Império, o Cine Siri, o Cineclube Charles Chaplin, o Circo-Teatro Sá, o Teatro de Variedades da Festa da Mocidade, o Taco de Ouro e o Imperial Cassino.
+Arquivo Público
O local onde os arquivos estão é o Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, localizado no bairro de Santo Antônio e apoiador institucional do projeto. Os documentos referentes ao DOPS no Estado foram encaminhados para lá em 1991. “São aproximadamente 145 mil fichas e cerca de 70 mil prontuários. É o segundo maior acervo do país. Se colocássemos nossos documentos em linha reta, teríamos 13 quilômetros”, afirma o coordenador geral do APEJE, Pedro Moura. Isso equivale à distância entre os centros de Recife e Camaragibe. Os itens se referem a documentos, periódicos, jornais, manuscritos, fotografias e à hemeroteca. O material está disponível totalmente ao público desde a sanção da Lei de Acesso à Informação, em 2011.