Brasília – A crise de lideranças políticas fortes no Congresso, somada a um contingente de parlamentares escolhidos mais por serem puxadores de votos do que pelos compromissos programáticos e ideológicos com as legendas às quais se filiaram, tem levado a um sucessivo aumento na infidelidade das bancadas nas votações no Legislativo federal. O nível de traição não se verifica apenas nas relações entre a base governista e o Palácio do Planalto. Em votações específicas, como a reforma política, a orientação das lideranças partidárias não tem sido seguida à risca nem mesmo entre os partidos de oposição. Com isso, cresce a influência de bancadas temáticas.
No caso da análise sobre o fim das coligações, por exemplo, o líder do PMDB na Câmara, Leonardo Picciani (RJ), orientou a bancada a se manifestar contra a iniciativa, mas 66% dos deputados peemedebistas votaram a favor da proposta. Quando o plenário da Câmara analisou o projeto do “distritão” – segundo o qual os parlamentares mais votados, independentemente de coligações ou partidos, serão aqueles que tomarão posse –, o Solidariedade encaminhou voto “sim”, mas quase 36% dos deputados votaram diferente da orientação. “A reforma política, como está sendo feita aqui na Câmara, vai aprofundar ainda mais isso. Estamos destruindo os partidos e ameaçando a democracia brasileira”, disse o deputado José Carlos Aleluia (DEM-BA).
O próprio Aleluia, que já comandou a bancada, recentemente desrespeitou uma orientação do líder do DEM, Mendonça Filho (PE), ao votar com o governo nas mudanças propostas no seguro-desemprego e nas pensões por morte. Segundo ele, votou por convicção sobre a necessidade de um ajuste para colocar as contas em ordem.
Aleluia acredita que o atual modelo eleitoral impede que as pessoas discutam programas de governo. “O que está ditando as coisas é o tempo de televisão e o Fundo Partidário, o que individualiza as candidaturas. Esse processo de apostar tudo na televisão está deseducando a população brasileira”, criticou o parlamentar baiano.
Deputado conhecido por ter opiniões fortes, Júlio Delgado (PSB-MG) afirma que há um decréscimo na qualidade do debate legislativo atual. Ele admite que um dos principais problemas é que o Congresso, especialmente a Câmara, tem se tornado cada vez mais corporativo, com representantes específicos de setores da sociedade que não conseguem pensar na macropolítica para o país. “Temos cada vez mais sindicalistas, militares, ruralistas e representantes da saúde, e menos parlamentares capazes de pensar em saídas para os grandes problemas do país”, lamenta.
Delgado afirma ainda que a chegada de deputados novos, com pouca experiência política, faz com que haja uma dificuldade grande de seguir as orientações das lideranças de bancada. “Tirando alguns líderes, como o Jovair Arantes (GO), que consegue ter alguma ascendência sobre a bancada, vemos outros casos de lideranças com extremas dificuldades em impor suas visões”, completou o deputado socialista, citando, por exemplo, o tucano Carlos Sampaio (SP), que sofre com a divisão interna na bancada entre deputados ligados ao senador Aécio Neves (MG), ao senador José Serra (SP) e ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.
Puxadores de voto
Para o diretor de documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antonio Augusto de Queiroz, os partidos também têm ficado reféns de outro problema. Para reforçar o tempo de televisão e o Fundo Partidário, eles se veem obrigados a trazer candidatos puxadores de votos que nem sempre têm compromisso com as bandeiras políticas da legenda. “Ao convencer, por exemplo, o ex-presidente do Corinthians Andrés Sanchez a se candidatar a deputado federal, o PT abre espaço para que ele vote de acordo com as próprias convicções”, disse Queiroz.
O cientista político Carlos Melo, do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, prefere não colocar a responsabilidade apenas nos liderados, mas também na incapacidade dos líderes de convencerem as próprias bancadas. “Temos uma carência de líderes no mundo, que dirá aqui. Muitos daqueles que estão em postos de comando hoje são apenas representantes de interesses. Intelectuais, empresários e representantes da sociedade se afastaram da política”, disse Melo. Durante palestra numa universidade de Brasília, na quinta-feira, o senador José Serra disse que nunca se conformou com a tese de que a política é a arte do possível. “Para mim, a política é a arte de estender os limites do possível”, disse ele.