São Paulo, 14 - Os dois consórcios de empreiteiras que se organizaram em cartel para fraudar as licitações da usina de Angra 3 encontraram resistência de "dr. Vasco", "Cardeal" e "botafoguense", dirigentes da Eletronuclear e Eletrobrás, quanto ao valor que elas receberiam para a execução de dois pacotes de obras da usina após se fundirem em um único consórcio. As informações constam de trocas de e-mails e depoimentos encaminhados pela Camargo Corrêa ao Cade em seu acordo de leniência e revelam que os esforços das estatais para tornar as obras mais econômicas não foram bem-sucedidos diante da organização do cartel.
Os apelidos eram utilizados pelos executivos das sete empreiteiras que participaram do certame - Camargo Corrêa, Odebrecht, Andrade Gutierrez, UTC, Queiroz Galvão, Techint e EBE - para se referir ao diretor técnico da Eletronuclear, Luiz Soares ("botafoguense"), ao superintendente de Gerenciamento de Empreendimentos da Eletronuclear, Luiz Amaral Messias ("dr. Vasco") e ao diretor de Geração da Eletrobrás, Valter Luiz Cardeal (chamado de "cardeal", "eclesiástico" e "sua santidade").
Chamou atenção dos dirigentes da Eletrobrás e da Eletronuclear os preços dos dois pacotes que foram vencidos pelo consórcio UNA 3 (Odebrecht, Andrade Gutierrez, UTC e Camargo Corrêa) e que, devido a uma restrição contratual, teve que ficar com apenas um pacote e conceder o outro ao consórcio concorrente, no caso o Angra 3 (Queiroz Galvão, Techint e EBE). Após ser anunciado que cada consórcio ficaria com um dos pacotes de obras, as empresas pretendiam se fundir em um consórcio só, o Angramon. Valter Luiz Cardeal, da Eletrobrás, contudo, cobrou um desconto de 20% do valor total dos dois pacotes, que juntos somavam R$ 3 bilhões.
"Dr. Vasco" e "botafoguense", então, foram escalados para informar aos executivos das empreiteiras da demanda da Eletrobrás, estatal da qual a Eletronuclear é subsidiária. O diretor de Contratos da Odebrecht, Henrique Pessoa Mendes Neto, conversou com os dois e repassou as informações aos seus colegas de consórcio em um e-mail de 21 de fevereiro de 2014.
A mensagem causou forte reação dos empreiteiros e o então diretor comercial de Energia da Camargo, apontado no acordo de leniência como Luiz Carlos, logo respondeu: "não podemos demonstrar fraqueza. Vamos atender a convocação e escutar. Nada mais nos é permitido. Se estamos seguro do trabalho que desenvolvemos até aqui, prossigamos firmes", disse.
"O governo precisa urgentemente de Angra 3. Nós enquanto empresários não.
A partir daí, representantes dos dois consórcios, UNA 3 a Angra 3, se reuniram e decidiram como responder às demandas da estatal. Os empreiteiros decidiram mandar um estudo apontando a possibilidade de desconto de 3,94% no preço dos dois pacotes e que estariam dispostos a dar o desconto total de 6% no caso da fusão dos consórcios.
O próprio edital da licitação previa que, em caso de fusão dos consórcios vencedores, deveria haver um desconto de 6% só que, além disso, os dirigentes da Eletrobrás e da Eletronuclear cobravam uma redução maior no preço. Isso porque chamou a atenção da estatal o fato de que cada um dos pacotes vencedores foi vencido por um preço 4,98% maior que a proposta inicial da Eletronuclear, sendo que o edital previa um limite máximo de 5% acima do valor estipulado pela estatal.
Inicialmente, houve a cobrança da redução dos 20%, considerando os 6% do edital mais 14% "negociáveis", mas Cardeal, diretor da Eletrobrás, recuou e em 7 de abril de 2014 pediu aos executivos o desconto de mais 4% além dos 6% previstos no edital. "Sua santidade me procurou, eu não retornei fiquei sabendo que ele está querendo 6% + 4% AG (Andrade Gutierrez) e QG ( Queiroz Galvão) disseram não. Roque (Augusto Roque, diretor de Odebrecht Energia que representa a empreiteira no consórcio de Belo Monte) foi abordado também, disse que este assunto é contigo e Fábio", afirmou Luiz Carlos, da Camargo Corrêa, em e-mails aos outros empreiteiros. "Quer cancelar minha opinião: se é desejo dele, que cancele. Belo Monte está caminhando na mesma direção", seguiu Luiz Carlos.
Ao final da negociação com a estatal, os empreiteiros acabaram conseguindo firmar o contrato com a Eletronuclear e criar o consórcio Angramon, responsável pelos dois pacotes de obras.
Respostas
Quando procuradas sobre o acordo de leniência da Camargo Corrêa com o Cade, no começo do mês, as empreiteiras citadas no esquema negaram irregularidades e evitaram comentar sobre o acordo.
A Queiroz Galvão disse que "acredita na idoneidade de todos os seus executivos e reafirma seu compromisso com a ética e a transparência". A companhia negou qualquer pagamento ilícito a agentes públicos para obtenção de contratos ou vantagens e reiterou que "todas as suas atividades seguem rigorosamente à legislação vigente".
A EBE disse que "não tem nenhum executivo envolvido neste processo que está sendo apurado e nem pagou nada a ninguém". "Apesar da desistência de algumas empresas do Consórcio Angramon, continuamos no firme propósito de manter o contrato assinado para a montagem de Angra 3. A EBE montou sozinha a Usina Nuclear de Angra 1 e fez parte do consórcio de empresas que montou Angra 2. A empresa tem larga experiência no setor nuclear e continua com o objetivo de honrar o contrato assinado para Angra 3."
A Techint Engenharia e Construção informou que reitera "que segue padrões internacionais de governança e observa estritamente a legislação brasileira."
A Construtora Norberto Odebrecht disse que nunca participou de cartel para contratação com qualquer cliente público ou privado. "A empresa não teve acesso a documentação constante do referido acordo e se manifestará nos autos do processo tão logo tenha acesso às informações em sua integralidade."
A Andrade Gutierrez e a UTC informaram que não iriam se manifestar sobre o caso.