Brasília - O procurador do Tribunal de Contas da União (TCU), que representou contra as chamadas “pedaladas” da presidente Dilma Rousseff em 2014 e 2015 – motivo do início do processo de impeachment da petista na Câmara –, se diz “absolutamente tranquilo” caso seu trabalho resulte na cassação da mandatária do país. Júlio Marcelo de Oliveira não se posiciona nem contra nem a favor da saída dela do governo. Mas afirma que as irregularidades eram graves e que cabe ao Congresso fazer um julgamento político. “Minha parte técnica cumpre mostrar as irregularidades”, diz ele em entrevista ao Estado de Minas. “Existem formas de gerir o país corretas, que não violam a Lei de Responsabilidade Fiscal”, destaca. Não é só Dilma que está devendo, afirma Júlio. Em todo o país, ele vê um cumprimento da lei que receberia uma nota 7,5. O procurador do Ministério Público faz parte de um grupo de pessoas que tentam derrubar a Medida Provisória 703, que muda a Lei Anticorrupção, criada em 2013, depois do clamor dos protestos de junho daquele ano, para que os acordos de leniência sejam fechados na Controladoria Geral da União (CGU) sem a participação obrigatória do Ministério Público. Para ele, o objetivo é “salvar” as empreiteiras investigadas na Lava-Jato, porque elas foram grandes financiadoras das campanhas eleitorais sob o falso argumento de proteger a economia. “Os países que optaram por punir as empresas tiveram desenvolvimento econômico maior.” Para Júlio Marcelo, é preciso reduzir a impunidade adotando as propostas das “10 medidas” da Lava-Jato, mas também diminuindo o número de políticos com foro privilegiado, o direito a serem julgados – lentamente – apenas em tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal. Veja os principais trechos da entrevista.
Qual o prejuízo que a MP 703, dos acordos de leniência, traz para a sociedade?
O acordo de leniência está na Lei Anticorrupção como instrumento de investigação para combater a corrupção. O governo adotou um discurso oposto ao objetivo: “Não cabe punir empresas, apenas executivos, e que é preciso, por meio dos acordos, salvar todas as empresas para salvar a economia brasileira”. A lei permite que a CGU feche acordos sem o Ministério Público. E pretende afastar o acompanhamento do TCU durante as negociações do acordo. O acordo não pode ser política de salvamento de empresas envolvidas em corrupção, mas de combate à corrupção e de concessão de benefícios apenas às empresas que trouxerem informações relevantes. O Ministério Público tem que fazer a avaliação obrigatória da utilidade e da conveniência de se fazer um acordo para avançar nas investigações.
A CGU pondera que só haverá acordo na área administrativa.
Esse acordo tem repercussões na esfera judicial e da improbidade. A lei diz que a empresa que celebrar o acordo não sofrerá nenhuma outra sanção de natureza administrativa e financeira decorrente dos mesmos fatos.
O TCU pode derrubar o acordo?
Sim, derrubar o acordo. A questão central é que o (Carlos) Higino (ministro da CGU) diz: “A instância administrativa é independente da penal”. Pode ser na dimensão processual. Mas no campo da investigação, a conexão é total. Estamos investigando os mesmos fatos, as mesmas pessoas.
É um texto sob encomenda?
Há um objetivo de salvar as empresas, que são ou foram grandes financiadores de campanha. Os países que optaram por punir as empresas tiveram desenvolvimento econômico maior. Num ambiente livre de corrupção, há redução de custo das empresas, melhoria do ambiente concorrencial, novos empreendedores podem se estabelecer por sua competência, não há um mercado capturado por um clube da propina, como é hoje o mercado de obras no Brasil. Tem centenas de outras empreiteiras com condições de contratar engenheiros experientes e construir grandes obras. Sem corrupção, a economia cresce muito mais do que salvando empresas corruptas.
Retirar abruptamente grandes empresas restabelece a economia automaticamente?
Não é instântaneo, mas também não é tão demorado. E o ganho compensa em muito a perda momentânea que você tenha. Passa a ter um crescimento sustentável. O custo de uma obra pública cai quando se tem uma economia baseada num ambiente concorrencial limpo. Em vez de fazer duas pontes, vou fazer três, contratar mais pessoas, ter melhor infraestrutura. Os ganhos para a economia em combater a corrupção são muito maiores. As obras estão paralisadas por causa da Lava-Jato? Não. A Petrobras parou as obras porque está em situação financeira muito difícil dada à conjuntura do dólar, do preço do barril do petróleo e do endividamento. A Petrobras poderia chamar outras empresas, inclusive internacionais.
Essa política de conteúdo nacional deve mudar?
Se ela nos deixar reféns de empresas envolvidas em corrupção, tem que ser mudada. Não podemos nos dar ao luxo de ser um país refém da corrupção.
Será que não há empresas brasileiras idôneas?
Tem centenas de empresas brasileiras. Se você visitasse o canteiro de obras do Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro) ou (da refinaria) de Abreu e Lima (em Pernambuco), tinha lá várias empreiteiras prestando serviços para as grandes (como) subcontratadas. Elas não conseguiam ser convidadas diretamente pela Petrobras porque não faziam parte do clube da propina. Mas elas têm know-how, têm condições de tocar obras. Por que vamos ficar reféns desse grupo? Essas empresas, só elas podem ter acesso ao grandes contratos no país?
O que será feito para derrubar a Medida Provisória 703?
O procurador-geral da República estuda entrar com a ação direta de inconstitucionalidade contra essa MP. Fizemos uma cautelar solicitando que o TCU estabeleça requisitos de como a CGU poderia fazer seus acordos e usando-os efetivamente para combater a corrupção. E vamos propor no Congresso emendas a essa MP para que ela seja corrigida.
Por que a pressa de mudar a Lei Anticorrupção por medida provisória?
O Congresso estava fazendo uma discussão dessa com a sociedade. E o governo imperialmente baixa uma medida provisória. Qual é a urgência?
Salvar as empreiteiras não é urgente?
Isso. Talvez seja essa a urgência que o governo viu, que a presidente viu para editar a MP. Salvar as empreiteiras. Para combater a corrupção não é.
Como está o andamento do processo das chamadas “pedaladas” de Dilma em 2015?
A Secretaria de Macroavaliação Governamental (do TCU) está examinando as duas representações, que serão analisadas provavelmente em maio e junho. O ministro José Múcio é o relator. Uma representação é em relação aos decretos (que Dilma usou para abrir créditos suplementares ao Orçamento sem o Congresso autorizar a redução da meta de superávit) e outra sobre as pedaladas (atraso nos pagamentos a bancos públicos para quitar programas sociais).
O senhor defende o impeachment?
Não sou a favor nem contra. É uma questão do Congresso. Minha atuação como procurador se limita a meu pedido de rejeição das contas dada a gravidade das irregeularidades e violação às leis de responsabilidade fiscal em 2014. Em 2015, representei para que seja apurado.
Até agora, não existe envolvimento da própria Dilma com corrupção. Ficaria tranquilo se usassem seu trabalho técnico para cassar o mandato dela?
Absolutamente tranquilo. Não é minha responsabilidade fazer essa avaliação política se ela deve ou não continuar o mandato. A Constituição estabeleceu que o julgamento do impeachment cabe ao Congresso, porque quer que o julgamento seja político. Se quisesse técnico, teria deixado para o Supremo. Existem formas de gerir o país corretas, que não violam a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a Constituição, a Lei Orçamentária. Essas irregularidades não poderiam ter ocorrido. Nosso papel é apontá-las. As consequências, cabe ao Congresso Nacional decidir.
A LRF vai fazer 16 anos. Ela está sendo cumprida corretamente para o bem da população?
Foi frontalmente violada a partir do segundo semestre de 2013, 2014 e 2015 com esses financiamentos de bancos públicos para o governo federal. A gente tem tido problemas sérios em vários estados. Imagina se não houvesse a lei. Esse exemplo do TCU de cobrar rigorosamente o cumprimento da LRF, espero que seja para os estados. Não é fácil para um órgão técnico fazer um enfrentamento dessa envergadura política: é preciso razões técnicas muito consistentes para recomendar a rejeição de contas de um presidente da República ou do governador do estado.
Numa escala de zero a 10, qual o nível de cumprimento da LRF?
Eu diria sete e meio como panorama nacional. Precisamos ter cumprimento nota 10.
Como o senhor vê ações de improbidade que se arrastam por anos sem julgamento?
É um problema crônico do Brasil essa lentidão da Justiça na responsabilização de agentes envolvidos em crimes de colarinho branco ou em situações de corrupção e improbidade administrativa. Essa lentidão da Justiça contribui para uma análise do baixo risco da corrupção. O processo vai demorar tanto tempo, 15, 20 anos para uma sentença definitiva.
Quais as “10 medidas” do Ministério Público Federal mais prioritárias para combater a corrupção?
Redução do número de recursos; priorização desses processos no Judiciário com varas e turmas especializadas; e redução de hipótese de foro privilegiado.
Acabar com o foro privilegiado não está entre as “10 medidas”.
Não, mas eu defendo porque o foro privilegiado contribui para a lentidão. Os tribunais superiores não estão estruturados para fazer a instrução de processos originários. Tem uma lentidão muito maior do que se fosse no primeiro grau. Os governadores, os conselheiros de tribunais de Contas e os desembargadores são julgados no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os processos são julgados pelo Órgão Especial do STJ, com 20 e tantos ministros. Esse órgão se reúne apenas uma vez por mês. Aí um ministro pede vista. Aquilo leva um tempo. Tudo contribui para a lentidão.