Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) considerava o homem como um “animal político”, que, em linhas gerais, carrega a capacidade de falar, pensar e discutir no espaço da cidade. As reflexões do filósofo da Grécia Antiga ganham ares de atualidade com as turbulências em torno do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional – que envolvem desde o pedido de prisão de um ex-presidente à autorização de um juiz para divulgar o conteúdo de escuta com fala da presidente até uma lista de doações de empreiteira para mais de 200 políticos. Família, amigos e colegas de trabalho têm se revelado, cada dia mais, animais políticos, que falam o que pensam. Mas nem sempre escutam aquilo com que concordam. Nesse ambiente de embate, conflitos familiares, amizades estremecidas e episódios de hostilidade se multiplicam na velocidade da divulgação dos escândalos na política.
A polarização se dá, principalmente, em torno do grupo que defende o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) e aquele que entende que a pressão para a saída da petista é uma tentativa de golpe de Estado orquestrada pela oposição. Isso tudo tensionado pelas investigações da Operação Lava-Jato, que investiga o esquema de propina na maior estatal brasileira, a Petrobras, e é conduzida pelo juiz federal Sérgio Moro, alvo de críticas e elogios. “A Operação Lava-Jato abriu a Caixa de Pandora do sistema partidário brasileiro num clima de polarização da população”, afirma o professor de Ciências Políticas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos Ranulfo.
Economista alinhado com pensamentos liberal e neoliberal, Mateus Quintela engrossa o coro de quem se opõe ao governo Dilma e pede o afastamento da mandatária. Ele participou do protesto de 13 de março, na Praça da Liberdade. “Nessa nova fase político-econômica, não toleramos a corrupção. Acho que a presidente é responsável por toda a estrutura que ela monta. O chefe é sempre responsável”, justifica Mateus, que reconhece avanços sociais do governo do PT.
A posição, entretanto, o tem afastado da família, principalmente do pai. Tanto o pai quanto a mãe dele têm posição política à esquerda, lutaram contra o regime militar e tiveram contato próximo com a presidente Dilma, natural de Belo Horizonte. “Ideologia é ideologia, não se discute nem se negocia. Desde as últimas denúncias e vazamentos, tenho evitado totalmente o contato. A família perde”, afirma Mateus, que aposta numa reaproximação quando houver melhor definição sobre os rumos do Brasil.
DIVERGÊNCIA O economista continua conversando com o irmão mais novo, Daniel Quintela, de 35, mas eles evitam o assunto, já que o caçula se identifica mais com a posição política dos pais. “Pensar diferente do meu irmão pode causar atritos que comprometem nossa relação. Tenho evitado conversar sobre o desenrolar dos fatos, pois prefiro ter a relação de irmão do que ter uma divergência política”, explica.
Ao contrário de Mateus, Daniel repudia a tentativa de impeachment da presidente, a qual enxerga como um golpe de Estado. Exatamente por isso, ele esteve presente na manifestação pró-Dilma no dia 18. “Acredito que o que está em risco nesse momento é a democracia brasileira, a Constituição federal e as liberdades individuais. Fui fazer coro com a legalidade e o Estado democrático de direito”, afirma.
O cientista político Carlos Ranulfo não tem visto com bons olhos o acirramento do embate político. “São manifestações com intolerância absurda. Não há discussão. São xingamentos, coxinha (apelido dado para quem é contra o governo) para um lado, mortadela (apelido para quem é a favor do governo) para o outro. A pessoa, dependendo da posição que assume, passa a ser execrada. Há uma interdição do debate”, comenta.
“Postei no Facebook que estava a favor do impeachment – está na cara que o governo está roubando. Depois disso, descobri que uma amiga minha de infância me bloqueou. É uma pena, pois gosto dela bastante.”
Daiane Lopes
26, estudante
“Por causa desse ódio, dessa cegueira, suspendi minha conta do Facebook logo depois que a Dilma indicou o Lula como ministro (Casa Civil). Parece uma partida de futebol, em que ambos só querem ver o seu próprio lado, sua própria ideologia.”
Ana Garcia
42, fotógrafa e sommelier
“Sempre fui petista e meu irmão tucano. Brigamos muito, a ponto de pessoas da família pedirem para pararmos. Só que nós estamos vendo que a corrupção existe dos dois lados. Como pode um país tão grande, tão rico, tão populoso e tão corrupto?”
Marco Antônio de Oliveira
32, metalúrgico
Ambiente hostil em todo o país
A discussão sobre a crise política pela qual atravessa o Brasil extrapola a intimidade e ganha a cena pública. Em novembro, bem antes da condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Operação Lava-Jato, que inflamou o acirramento da crise, o ambiente de hostilidade política começou a dar mostras do que estaria por vir.
Primeiramente, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, e o secretário-adjunto de Estado de Educação, Carlão Pereira (PT), foram xingados por clientes de um restaurante em Belo Horizonte. Um mês depois, foi a vez do cantor e compositor Chico Buarque. Apoiador declarado do governo da presidente Dilma Rousseff (PT), ele foi hostilizado por um grupo anti-PT numa esquina do Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Desde o início do mês, o clima esquentou e a política foi parar até na igreja. Logo depois da condução coercitiva de Lula, o bispo auxiliar de Aparecida (SP) citou “jararacas” e “vencer o mal pelo bem” na missa de domingo, suscitando analogia com o discurso que Lula se comparou a uma jararaca. A homilia causou reações diversas na internet.
No dia 16, o deputado estadual Rogério Correia (PT), torcedor do Atlético Mineiro, foi hostilizado pela torcida do Galo, que gritou “vai embora” e “vai tomar no c...”. Em apoio ao parlamentar, um torcedor o cumprimentou. Na mesma semana, uma professora de história de Curitiba foi tratada com palavras agressivas nas redes sociais por pais de alunos depois de criticar uma manifestação pró-impeachment de estudantes do colégio em que trabalha. Ela acabou pedindo demissão, por alegar estar intimidada com as reações.
Mas talvez o episódio mais célebre é o que envolveu o ator e diretor Cláudio Botelho, no último sábado, em Belo Horizonte. A sessão do espetáculo Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos precisou ser interrompida depois que Botelho, protagonista da montagem, incluiu de improviso no texto uma referência a “um ex-presidente ladrão que foi preso” e a “uma presidente ladra que sofreu o impeachment”. Parte do público vaiou e começou a se retirar do teatro. Botelho aconselhou que fossem à bilheteria para “pegar seu dinheiro de volta”. Um grande grupo de espectadores preferiu se postar na lateral da sala gritando “Chico!” e “não vai ter golpe!”. (FA)