Segundo Kundera, assim como uma mulher que se maquia antes de sair apressada para o primeiro encontro, quando o mundo corre em nossa direção no momento em que nascemos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado. “E os conformistas não serão os únicos a ser enganados; os seres rebeldes, ávidos de se opor a tudo e a todos, não se dão conta do quanto também estão sendo obedientes, não se revoltarão a não ser contra o que interpretado (pré-interpretado) como digno de revolta”.
Ao fazer um paralelo entre a pintura e a literatura, Kundera destaca o quadro célebre de Delacroix, A liberdade guiando o povo, que retrata “uma mulher jovem numa barricada, o rosto severo, os seios nus inspirando medo; ao seu lado, um revolucionário maltrapilho com uma pistola na mão”. Kundera não gosta da pintura, mas reconhece a obra de arte. Adverte, porém, que um romance que glorifique semelhantes posturas convencionais, símbolos tão gastos, se excluiria da história da literatura. De fato, foi o que aconteceu com a maioria dos autores do realismo socialista.
A Operação Lava-Jato se desenrola como um grande romance, pois rasga a cortina de um mundo político maquiado, mascarado e pré-interpretado.
“O problema da política neste momento, eu diria, é a falta de alternativa. Não tem para onde correr. Isso é um desastre. Numa sociedade democrática, a política é um gênero de primeira necessidade. A política morreu. Talvez eu tenha exagerado, mas ela está gravemente enferma. É preciso mudar”, disparou o ministro. Como rasgar essa cortina? Essa é a questão que está posta. Gostem ou não os políticos, para a sociedade, quem está rasgando a cortina é a Operação Lava-Jato.
Ideias anacrônicas
Na raiz do impasse nacional, há duas concepções que tecem a crise tríplice: de um lado, a ideia de que o Estado é o tutor e provedor da sociedade; de outro, a de que os fins justificam os meios, ainda mais se os objetivos são, digamos, (pseudo) revolucionários. O fracasso do governo Dilma Rousseff pode ser atribuído a esses dois aspectos, basta fazer uma retrospectiva dos erros cometidos na condução da economia e agora mesmo, no fragor da batalha, das ações em curso para reorganizar a base do governo contra o impeachment.
A presidente Dilma Rousseff mobiliza correligionários e aliados, montou um palanque no Palácio do Planalto para atacar a Operação Lava-Jato e defender seu mandato. Recorre ao passado e compara a situação atual às crises que levaram o presidente Getúlio Vargas ao suicídio, em 1954, e os militares ao golpe de Estado que destituiu João Goulart, em 1964.
Fala-se muito em defesa do Estado democrático e das garantias e direitos individuais, embora os militares (protagonistas das rupturas de 1889, 1930 e 1964) estejam quietos no seu canto. A economia está se desmanchando. A democracia brasileira foi bloqueada. Um pacto perverso garroteou suas instituições. Quem pode impedir que a cortina seja remendada pelo Executivo? O Congresso Nacional, se também purgar seus pecados e cortar na própria carne; ou o Supremo Tribunal Federal, se levar adiante a Operação Lava-Jato e iluminar o palco da renovação política.
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