Se no documentário do diretor João Moreira Salles sobre a campanha eleitoral vitoriosa de Lula em 2002 temos o líder conciliador, o articulador habilidoso e o operário bonachão, no conjunto da Lava Jato nos deparamos com o operário ressentido, o político raivoso (e, por isso, desastrado), o líder divisionista. Mais interessante e desafiante nesse exercício analítico, porém, é encontrar no Lula de Entreatos os traços do Lula atual. E os sinais estão quase todos lá.
Assistir ao documentário hoje, após os últimos e intensos anos da política brasileira, é como projetar na mente um filme de ficção policial cuja cena de abertura é a do mocinho com a arma fumegante na mão diante do cadáver fresco. A partir daí, rodamos a fita ao contrário, na busca de pistas que nos ajudem a compreender o provável desfecho trágico do protagonista na Lava Jato. Como o Lula de Entreatos desembocou no Lula do conjunto de grampos e do depoimento à Polícia Federal?
As primeiras e mais evidentes pistas fornecidas por Entreatos formam um valoroso registro da política pré-mensalão e pré-Lava Jato, o testemunho de um tempo em que candidatos nas campanhas eleitorais cruzavam o Brasil em jatinhos, hospedavam-se com comitivas enormes em hotéis cinco-estrelas, contratavam artistas caros para showmícios e todo mundo, ou pelo menos muita gente, se perguntava de onde vinha o dinheiro para aquilo.
Confiança
José Dirceu (o poderoso), Delúbio Soares (o tesoureiro) e Sílvio Pereira (o faz-tudo) foram abatidos pela revelação da transferência de recursos oriundos do esquema montado ainda na campanha para parlamentares da base lulista. Os três também são investigados pelo Ministério Público Federal na Lava Jato, sob suspeita de terem se beneficiado do esquema de desvios de recursos e de corrupção na Petrobras. Dirceu, Delúbio e Sílvio Pereira gozam da confiança de Lula, participam de discussões a portas fechadas e deixam claro no documentário o poder que teriam no futuro governo. As investigações em curso em Curitiba nos revelam que eles participaram ativamente das nomeações para as diretorias da Petrobrás, base e origem do esquema. Mais ainda: a Lava Jato está no caminho de provar o elo entre o mensalão e o crime na estatal.
Assim, uma parte da resposta está dada. O Lula de Entreatos estava amparado por operadores políticos que se utilizavam da expectativa de poder do petista para continuar a fazer girar a engrenagem financeira que alimentaria a consolidação do mito, embalado em ternos caros, palatável às elites e aos mercados. Uma vez na Presidência, esse grupo estreitou laços com o publicitário Marcos Valério e com os operadores da Petrobrás. "Pelo panorama dos elementos probatórios colhidos até aqui e descritos ao longo desta manifestação, essa organização criminosa jamais poderia ter funcionado por tantos anos e de uma forma tão ampla e agressiva no âmbito do governo federal sem que o ex-presidente Lula dela participasse", afirmou o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em peça divulgada recentemente.
No documentário, Lula é um democrata cordial, empunhando a bandeira do respeito às instituições. Mas, quando o juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba, torna público o conteúdo dos diálogos telefônicos de Lula interceptados pela Lava Jato, no dia 16 de março deste ano, sai de cena o "Lulinha Paz e Amor" de Entreatos, criado pelo marqueteiro Duda Mendonça, para entrar o raivoso e desastrado "Lula Jararaca", que conseguiu se indispor com o Ministério Público, os juízes federais e o Supremo.
A manifestação recente de Janot, talvez o ápice contra o ex-presidente até agora na Lava Jato, ajuda a explicar frases como a coletada nos grampos da operação e que contradiz a versão cinematográfica do mito: "Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada. Nós temos um Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado. Um Parlamento totalmente acovardado Somente nos últimos tempos é que o PT e o PC do B começaram a acordar e começaram a brigar Nós temos um presidente da Câmara fodido, um presidente do Senado fodido, não sei quantos parlamentares ameaçados, sabe? E fica todo mundo no compasso de que vai acontecer um milagre e vai todo mundo se salvar". Em outro trecho, o ataque é também direto. "Eu acho que eles (autoridades da operação) têm que ter em conta o seguinte, bicho, eles têm que ter medo."
Há em Entreatos, também, as pistas pessoais fornecidas por Lula.
Futuro
Há ainda passagens que se tornaram clássicas no documentário, como as alfinetadas no tucano Fernando Henrique Cardoso, as brincadeiras de organizar peladas de futebol nos gramados de Brasília e as referências (muitas) à infância sofrida e à luta pela sobrevivência.
Mesmo elas, que soam despretensiosas, fornecem indícios sobre a maneira como tratar a oposição, o bem público e, principalmente, como se vitimizar e se escorar no populismo para se defender. A comparação entre o Lula de Entreatos e o Lula da Lava Jato não se esgota na síntese entre passado e presente do mito. Ela também diz muito sobre o futuro porque escancara a capacidade dele de se transmutar, de falar para diferentes plateias em vários ambientes. A sobrevivência é sua grande virtude. Os tempos, porém, são outros e os obstáculos para ele transpor estão fora da esfera que Lula domina, a política. As informações são do jornal
O Estado de S. Paulo..