São Paulo, 24 - O chamado direito ao esquecimento será julgado em breve pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Na mesa, o pedido feito pela família de uma vítima de homicídio da década de 1950 - que quer impedir veículos de comunicação de relembrar a sua história sob alegação de violação de privacidade. Com repercussão geral, a ação na mais alta Corte brasileira vai definir um posicionamento único que deverá ser seguido pelo Judiciário. Mesmo com a Procuradoria-Geral da República posicionando-se de forma contrária à tese, quase 1/3 da jurisprudência em tribunais estaduais tem concedido o direito de se apagar da história fatos já noticiados.
Levantamento do jornal O Estado de S. Paulo mostra que, de ao menos 94 processos já analisados por desembargadores no País, 67 negaram o pedido de se esquecer o passado. No entanto, 27 aceitaram a hipótese.
O direito ao esquecimento obriga retirar e apagar de páginas da internet conteúdos que associem o nome de qualquer pessoa a fato calunioso, difamatório, injurioso ou a um crime do qual ela tenha sido absolvida e sobre o qual não haja mais possibilidade de recurso. Para o advogado que representa a família Curi, Roberto Algranti Filho, o caso da jovem Aída Jacob Curi, estuprada e assassinada brutalmente aos 18 anos de idade em julho de 1958, no Rio, é exemplar e pode criar critérios mínimos para a atividade de imprensa.
Na avaliação de Algranti Filho, com o fim da Lei de Imprensa (2009), ficou um vácuo em relação ao que é notícia de interesse público e aquilo que só diz respeito à família. A defesa da família questiona a veiculação do caso no programa Linha Direta, da TV Globo, em 2004. Se tudo é jornalismo, nada está protegido, nem a própria imprensa. O caso de Aída não tem interesse público, não é um caso que conta a história do País, não existem motivos para reabrir uma ferida e causar dor aos parentes, diz o advogado.
Em seu parecer sobre o caso, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, lembrou que o direito ao esquecimento ainda não foi reconhecido ou demarcado no âmbito civil por norma alguma do ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, segundo ele, não pode limitar o direito fundamental à liberdade de expressão por censura ou exigência de autorização prévia.
Embora o direito ao esquecimento tenha sido aprovado na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) da Câmara, ele ainda não foi votado em plenário. Ainda assim, acumulam-se processos em que o princípio é posto em pauta - alguns deles tendo como base o caso julgado no Tribunal de Justiça da União Europeia (mais informações nesta página).
Equívoco
Além do questionamento da família Curi, um outro recurso envolvendo um dos acusados, e depois absolvido, pela chacina da Candelária já chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e muitos outros rondam os tribunais estaduais. Ainda é um tema muito recente. Um princípio que ainda causa muito debate e dúvidas. Nesse sentido, o caso Curi não foi um bom exemplo para ser tomado como repercussão geral, diz o professor de Direito Constitucional da FGV Direito e coordenador do Supremo em Pauta, Rubens Glezer. É um equívoco. O caso dos Curi está muito mais relacionado à ofensa do que ao esquecimento. A decisão do STF, seja qual for, pode causar mais problemas e interpretações inconclusivas, afirma Glezer.
Para o professor de Direito Constitucional Luiz Guilherme Arcaro Conci, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), é imperativo separar a questão entre o cidadão comum e aquele que exerce cargo público ou que, porventura, tenha feito algo de repercussão nacional. É preciso levar em conta a situação e a particularidade de cada caso. O que é vida pública não pode ser protegido pela lei do esquecimento. Uma coisa é quem teve um problema na vida pessoal aparecer na busca do Google para o resto da vida. Outra, bem diferente, é um político, com mandato, querer tirar seu nome de uma denúncia, diz.
A advogada Taís Gasparian, que já atuou em diversos casos em que o direito ao esquecimento foi ao menos citado, diz que a hipótese de aplicá-lo é como queimar bibliotecas, uma volta à Idade Média. Quem pode decidir o que é histórico ou não?, questiona Taís. Ela afirma que, na esfera pública, mesmo os erros de informação podem ter relevância para estudos futuros. De acordo com a advogada, o perfil atual do STF não deve abrir as portas para a Lei do Esquecimento.
Para Patrícia Blanco, diretora do Instituto Palavra Aberta, toda e qualquer regra que estabeleça a retirada de conteúdo ou link de acesso a determinado conteúdo fere a liberdade de expressão e de imprensa. Patrícia diz acreditar, no máximo, em um código de autorregulamentação e voluntário, sem que haja a necessidade de uma nova lei que estabeleça esse procedimento. Além disso, já existe no Brasil um amplo arcabouço jurídico capaz de proteger o cidadão de qualquer abuso ou excesso que possa ser cometido, afirma.
História
Para o professor de História da PUC-SP Luiz Antônio Dias, a função do historiador é lembrar o que a sociedade quer esquecer. Para ele, o direito ao esquecimento não poderia criar barreiras para, por exemplo, o Brasil se deparar com sua própria história. Separar o personagem público do personagem histórico é difícil. Eu entendo que a família de um torturado na ditadura militar não queira falar sobre o assunto, mas, ao mesmo tempo, o depoimento dele tem uma importância histórica fundamental. Em tese, sou contra a Lei do Esquecimento, mas não acho que seja um tema simples. Consigo entender o lado de quem, às vezes, prefere esquecer.
O doutor em História Social e colunista do jornal O Estado de S. Paulo, Leandro Karnal, afirma que o direito ao esquecimento deveria ser possível. O resgate da privacidade é um desafio novo. Nunca estivemos tão expostos. Logo, surge uma nova meta ou utopia: o esquecimento. O debate é muito contemporâneo: quem tem direito a controlar a memória da minha vida? Todos devem ter acesso permanente aos dados sobre mim? Ser esquecido é um direito, mas será exequível? Talvez, em breve, incluamos o anonimato como direito fundamental do homem, diz.