O livro Adeus, senhor presidente, de Carlos Matus, um dos teóricos da administração pública mais estudados no Brasil, por causa do seu método de “planejamento estratégico situacional”, é um ensaio romanceado sobre o exercício do poder na América Latina. Ex-ministro de Salvador Allende, Matus não se limitou a denunciar e repudiar o golpe militar de Pinochet, ocorrido em 1973, que transformou o Chile num mar de sangue, procurou também entender o que aconteceu e buscar caminhos para que os erros cometidos pela esquerda chilena não se repetissem.
Não passa pela cabeça de ninguém comparar o impeachment da presidente Dilma Rousseff ao golpe fascista chileno, mesmo entre aqueles que acusam o presidente interino Michel Temer de golpista, mas o contexto justifica, ao menos para quem foi apeado do poder, conhecer ou revisitar a obra de Matus. Ele constrói um cenário fictício, que começa com a posse de um presidente que criou grandes expectativas e prometeu muitas mudanças e termina com suas reflexões, depois de afastado do poder, sobre o desapontamento dos eleitores e as razões pelas quais não cumpriu o que prometeu. Detalhe: seu sucessor também é malsucedido e desaponta o povo.
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Promessa de cargos e obras dá votos a Temer na ação contra Dilma no SenadoPadilha: nosso time não tem disputa, jogamos de forma unida sob a batuta de Temer''Correu tudo conforme o esperado'', diz Temer sobre a sessão do impeachmentTécnicos do TSE pedem mais prazo para perícia em empresas da campanha de DilmaSenado começa a julgar Dilma Rousseff no dia 25Matus trabalha com o cotidiano do governo, a perda de tempo com coisas banais, os erros estratégicos, as intrigas políticas e lutas intestinas, num palácio onde pululam sindicalistas, dirigentes partidários, empresários, tecnocratas, intelectuais, jornalistas, parentes e corruptos de todas as categorias. É muito semelhante à situação de Dilma, que pode até ter lido a obra de Matus, mas parece que não adiantou muito. São favas contadas a sua cassação, depois da votação da madrugada de ontem no Senado, quando se decidiu, por 59 votos a favor e 21 contrários, dar inicio ao julgamento final do seu impeachment.
O líder comunista Enrico Berlinguer, falecido em 1984, profundamente marcado pelo fracasso da experiência chilena, nela se inspirou para propor o famoso “compromisso histórico” entre os comunistas e democratas-cristãos na Itália, que se digladiavam desde o fim da Segunda Guerra Mundial. À época, o líder democrata-cristão Aldo Moro, que viria a ser assassinado 1978, depois de 55 dias de cativeiro, pelas Brigadas Vermelhas, uma organização terrorista de extrema-esquerda, sinalizava a possibilidade de concretização da aliança, com sua “abertura à esquerda”. Essa estratégia produziu bons resultados eleitorais para o PCI nas eleições de 1976, nas quais obteve 35,9% dos sufrágios, levando-o a apoiar o governo do democrata-cristão Giulio Andreotti.
Foi uma grande oportunidade perdida por todos os partidos italianos, que prosseguiram numa trajetória meio suicida ao deixar que a corrupção contaminasse suas entranhas e levasse a Itália a uma sucessão de crises políticas, que acabou com a derrocada de todos, que praticamente desapareceram após a Operação Mãos Limpas, inclusive o poderoso PCI. Depois de uma sucessão de fusões, o PCI se tornou o Partido Democrático, hoje no poder. Esses parênteses fazem sentido porque aqui no Brasil vivemos um fenômeno político semelhante, que está sendo desnudado pela Operação Lava-Jato, cujo impacto no sistema eleitoral e partidário pode ser muito maior do que imaginam os grandes caciques da política brasileira.
Não errar
O placar de ontem no Senado mostra que o impeachment é mesmo inexorável e que o presidente interino Michel Temer tem capacidade de articulação e força política para garantir a governabilidade. Há expectativa de que a cassação da presidente Dilma se dê em 25 de agosto, ironicamente, o Dia do Soldado. Vale destacar que a presidente afastada, no auge das manifestações de protesto contra seu governo, chegou a cogitar da decretação de “estado de defesa” (que lhe conferiria poderes especiais para suspender algumas garantias individuais asseguradas pela Constituição, a pretexto de restabelecer a ordem em situações de crise institucional), mas não obteve apoio dos comandantes militares, nem do então ministro da Defesa, Aldo Rebelo (PCdoB), que a demoveu dessa ideia. Esse fato é o melhor exemplo de que o Brasil atravessa uma crise política, econômica e ética sem precedentes, mas não vive uma crise institucional, graças ao comportamento profissional das Forças Armadas.
Mas voltemos ao impeachment. Michel Temer, apesar do grande apoio político e parlamentar, se defrontará com os mesmos problemas que levaram à breca o governo Dilma: recessão, desemprego, inflação, déficit fiscal, fisiologismo político e envolvimento dos partidos de sua base no escândalo da Petrobras.