Em uma longa entrevista exclusiva ao jornal britânico Financial Times, a ex-presidente Dilma Rousseff salientou que uma autoridade mulher é chamada de "dura", enquanto um homem é chamado de "forte". Para ela, o governo à frente do País hoje é formado por "velhos brancos ricos ou, pelo menos, daqueles que querem ser ricos". Dilma foi afastada num processo de impeachment em maio de 2016 e falou ao periódico sobre a "impressionante mudança" de sorte e sobre seus planos futuros.
O espaço concedido a Dilma faz parte de uma série de entrevistas e perfis exibidos pela publicação nesta quinta-feira, 8, com as consideradas "Mulheres do Ano". Além de Dilma, também há entrevistas com a primeira-ministra britânica, Theresa May; com Simone Biles, considerada a maior ginasta de todos os tempos; com a escritora e apresentadora de TV britânica do ramo de culinária Mary Berry, e um perfil da gerente de campanha do então candidato Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, Kellyanne Conway, entre outras.
"Para uma mulher que acabou de suportar um duro período de seis meses de julgamento político, que resultou em seu impeachment, a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff parece incrivelmente relaxada", avaliou logo no início da entrevista o chefe da sucursal do FT no Brasil, Joe Leahy. A entrevista com a "primeira mulher presidente do maior país da América Latina" foi concedida em um hotel em Porto Alegre.
Dilma, que tem 68 anos, enfatizou sua nova paixão: andar de bicicleta - um hobby que adquiriu ainda quando estava no Palácio do Planalto e que continua a praticar na capital gaúcha, onde começou sua carreira política. "O lado sério de Dilma - uma ex-guerrilheira marxista que conquistou o cargo em 2010 com o apoio do que era então um dos movimentos operários mais bem-sucedidos do mundo, o PT, nunca está longe, no entanto."
Leahy descreve que Dilma mostra uma indignação nervosa, por exemplo, em qualquer menção sobre o governo que a substituiu, liderado pelo seu ex-vice-presidente e inimigo político, Michel Temer. "É um governo de velhos brancos ricos ou, pelo menos, daqueles que querem ser ricos", disse ela, insinuando uma longa lista de acusações de corrupção contra os membros da coalizão de Temer.
A reportagem salienta que a ex-presidente ainda deve estar chocada com a reviravolta de sua sorte - uma inversão que correspondeu à de sua nação, que passou de um milagre econômico de mercado emergente a um desapontamento em poucos anos.
Truques orçamentários
O FT explica aos leitores britânicos que Dilma saiu do poder em maio e que foi expulsa da Presidência em agosto, depois que o Senado a considerou culpada por uma série de manobras fiscais usadas para estimular a economia e disfarçar o pior do déficit orçamentário visto no Estado.
Ela alega que os mesmos truques orçamentários foram usados pelos seus antecessores, mas a reportagem cita que, pela primeira vez desde antes da segunda guerra mundial, seu governo foi o primeiro a ter as contas rejeitadas pela fiscalização das finanças públicas, o TCU.
"No final, o processo de impeachment foi um julgamento político - a verdadeira razão pela qual ela perdeu o poder foi a queda da popularidade em meio a uma recessão crescente e uma investigação de corrupção na estatal Petrobras", considerou o jornal.
Essa situação, lembra o correspondente, mostra um forte contraste com sua posição de seis anos atrás, quando sua popularidade dava inveja a qualquer líder mundial.
Para o periódico, ela foi a mulher que finalmente quebrou o teto de vidro na política brasileira, que se colocou como campeã das minorias e dos pobres por meio de programas como 'Sem Miséria' - enviando assistentes sociais para auxiliar os desamparados e garantir a seus regimes de assistência social.
"Eu acho que a oligarquia tradicional brasileira ficou chateada com essa pequena (redistribuição da riqueza)", disse Dilma. "Após séculos de exclusão, este foi um esforço muito pequeno na inclusão. Não foi fantástico; precisa ser muito mais do que o que fizemos", continuou.
Mal-humorada amigável
A imagem pública da ex-presidente é de uma líder mal-humorada, mas pessoalmente ela pode ser informal e amigável, conforme o entrevistador. A reportagem é entremeada por várias fotos em preto e branco da ex-presidente, feitas durante a entrevista. Dilma, de acordo com o jornal, vestia uma de suas "roupas de poder".
O periódico também comenta que ela é famosa por usar várias vezes a palavra "querido" durante uma conversa. "Mais uma tecnocrata do que uma política natural, se vê que Dilma fica mais feliz quando discute os detalhes do orçamento federal, apoiada pelo PowerPoint", considerou o FT.
Outra qualidade que a define, de acordo com a publicação, é seu dogmatismo. O Financial Times conta que Dilma nasceu em 1947, em Belo Horizonte, e que começou a combater a então ditadura militar do país com apenas 16 anos. Conheceu o advogado Carlos Franklin Paixão de Araújo, pai de sua única filha, antes de ser presa por três anos pelos militares em 1970. "Ela foi torturada, uma experiência que lembrou a seus oponentes durante o processo de impeachment para mostrar que ela sabia como resistir a qualquer coisa", citou a reportagem.
Detalhando o perfil da ex-presidente, o jornal lembra que a primeira vez que Dilma foi eleita, já foi para a Presidência em 2010, depois de ter sido ministra no governo de seu predecessor e mentor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O FT destaca que Lula deixou para sua sucessora um crescimento econômico de 4% ao ano, em média. Já Dilma entregou a Temer, neste ano, uma economia que estava se contraindo quase na mesma proporção - considerada a pior recessão do Brasil em mais de um século.
A reportagem comenta que economistas do setor privado culpam Dilma por esse quadro. O argumento dos analistas apontado pelo Financial Times é o de que, embora o Brasil tenha sido atingido pela queda das commodities, suas políticas econômicas intervencionistas - como tentar controlar os preços dos combustíveis e da energia - minaram a confiança das empresas.
"Mas qualquer pessoa que espere um mea culpa será decepcionada. A crise financeira global está por trás dos problemas da economia, diz ela, enquanto o Congresso congelou suas tentativas de introduzir reformas, incluindo aumentos de impostos para deter uma explosão no déficit orçamentário."
Loucura
Para Dilma, a proposta de Temer de congelar o crescimento dos gastos orçamentários por 20 anos é uma "loucura". "Durante uma recessão, uma política de austeridade é o suicídio", disse ela. "No curto prazo, você tem que aumentar o investimento público."
Dilma chama seu impeachment de um "golpe". O jornalista questiona, então, por que ela não permaneceu no palácio presidencial de Brasília (citado como uma das obras-primas do arquiteto Oscar Niemeyer), em um posicionamento de resistência como a jovem guerrilheira teria feito. A ex-presidente responde que a luta atual é diferente. E argumentou que, em todos os lugares, o 'neoliberalismo' está ruminando os fundamentos da democracia.
A melhor maneira de enfrentar essa ameaça, de acordo com ela, é usar as instituições democráticas, como quando foi ao Senado durante o processo de impeachment para enfrentar seus opositores. "Por que não poderia ceder à tentação de amarrar-me a uma das belas colunas de Niemeyer no Palácio? Porque nesta fase, a melhor arma é a crítica, a conversa, o diálogo, o debate. A verdade é o oxigênio da democracia."
Calcanhar de Aquiles
O FT destaca também menciona que, pessoas que trabalharam com ela dizem que, ao contrário de muitos políticos brasileiros, Dilma não é uma pessoa corrupta. Mas seu calcanhar de Aquiles é, sem dúvida, a Petrobras, de acordo com seus críticos. Dilma presidiu a companhia petrolífera de 2003 a 2010 como presidente da empresa e ministro da energia.
Uma investigação abrangente sobre corrupção na empresa, conhecida como "Lava Jato", revelou que alguns executivos da Petrobras conspiraram com antigos políticos e membros da coalizão do governo para extrair bilhões de dólares em subornos e propinas da empresa, muito durante seu mandato.
O jornal menciona que Dilma não foi acusada de nenhum crime. "Ela insiste que nunca suspeitou de nada - apesar de um inquérito do Congresso sobre a corrupção na empresa em 2009, quando ainda era presidente, e os custos enormemente inflacionados dos projetos da empresa", trouxe a publicação.
Dilma insistiu também durante a entrevista que, se não fossem as reformas que ela introduziu para combater a corrupção, a investigação Lava Jato nunca poderia ter acontecido.
Questionada sobre o futuro, a ex-presidente disse que não pretende mais concorrer a cargos eletivos. "Mas continuarei a ser politicamente ativa", avisou. Ela é membro do conselho da Fundação Perseu Abramo, um órgão ligado ao PT, e planeja viajar para o exterior para informar outros países sobre o retrocesso imposto pelo governo Temer.
Para as mulheres, ela queria deixar um legado de uma presidente bem sucedida, não um impeachment, disse Dilma ao periódico. "Em todo o caso, vou deixar como legado para as mulheres minha trajetória. Eu digo que nós (mulheres) não somos pessoas que desistem, que se dobram sob a adversidade." Para ela, as mulheres sempre enfrentam algum nível de discriminação, mesmo em "sociedades mais civilizadas".
Dilma, lembra a reportagem, foi frequentemente acusada de ser uma dama de ferro, supostamente tão "dura" que fez ministros chorarem em seu gabinete quando não apresentaram o dever de casa. "Quando você é uma autoridade mulher, eles dizem que você é dura, seca e insensível, enquanto um homem na mesma posição é forte, firme e encantador", comparou.
Sobre o período, Dilma brinca que o mais frustrante foi que ela foi pintada como um ogro, enquanto os homens na política brasileira ficaram "cheirando a rosas". "Um dia, depois de me cansar de ouvir o quão dura eu era, eu disse (sarcasticamente) que sim. Isso mesmo, eu sou uma mulher dura rodeada por homens doces. Todos eles são muito doces."