Brasília, 19 - A decisão do Ministério da Justiça (MJ) em lançar mão de uma portaria para alterar as regras de demarcação de terras indígenas no País causou um profundo mal estar dentro da própria Fundação Nacional do Índio (Funai), autarquia ligada ao MJ e que, até quarta-feira, 18, era o órgão técnico responsável por cuidar dessas demarcações.
O jornal "O Estado de S. Paulo" teve acesso a um memorando que o diretor de proteção territorial da Funai, Walter Coutinho Júnior, responsável pelas demarcações de terras, enviou nesta quinta-feira, 19, ao novo presidente da Funai, Antônio Fernandes Toninho Costa, que assumiu o cargo há três dias.
No documento técnico, Coutinho Júnior faz duras críticas a uma série de problemas da portaria 68 e pede a "revogação imediata" do ato que criou uma nova estrutura para acompanhar o processo de demarcação de terras, o chamado Grupo Técnico Especializado (GTE), com o propósito de "fornecer subsídios em assuntos que envolvam demarcação de terra indígena".
"Em uma avaliação preliminar, consideramos que sua manutenção, tal qual publicada, poderá suscitar sérias reações adversas entre os povos, comunidades e organizações indígenas, demandando esforços governamentais consideráveis para fazer face às previsíveis objeções que encontrará para que seu desiderato venha a ser implementado", alerta Coutinho Júnior.
Em sete páginas, o diretor de proteção territorial da Funai rebate cada um dos pontos polêmicos da proposta, relatando que "o primeiro ponto a ser registrado é a surpresa" com que a Funai recebeu a notícia sobre as mudanças. "É preciso assinalar que a expedição de um ato dessa natureza não chegou sequer a ser cogitada junto à Funai ou discutida antecipadamente com seus órgãos técnicos", diz Coutinho Júnior.
Segundo o diretor da Funai, a portaria cria "mais uma instância formal de avaliação e intervenção no procedimento de demarcação das terras indígenas brasileiras", função que, por lei, cabe à Funai desempenhar. Ele chama a atenção ainda para uma série de lacunas do texto. "O que se pode constatar, de plano, é a carência de motivação técnica, ou quiçá até mesmo jurídica, para a adoção dos critérios especificamente elencados pela portaria, além, evidentemente, da ausência de clareza na sua formulação", afirma.
Na avaliação de Coutinho Júnior, o que a portaria faz, na prática, é levantar suspeitas sobre o trabalho técnico da própria Funai. "No mínimo é curioso que, após concluir todos os procedimentos legais e administrativos de sua alçada, e depois de encaminhar formalmente o processo à deliberação do excelentíssimo senhor Ministro de Estado, nos termos do Decreto nº 1.775/96, a Funai seja chamada a reavaliar tecnicamente o seu próprio trabalho."
O diretor da fundação conclui com a análise de que o texto do MJ padece de "franca ilegitimidade na medida em que veio a ser gestada e publicada sem que seu conteúdo fosse objeto de informação e consulta aos povos indígenas, sem que houvesse sido discutida no âmbito das instâncias governamentais apropriadas, com evidente destaque para o Conselho Nacional de Política Indigenista instituído pelo Decreto nº 8.593/15, sem que tivesse sido analisada previamente pelo órgão federal responsável pela política indigenista no país e sem que fosse apreciada por organizações indigenistas da sociedade civil organizada".
Procurado pela reportagem, Walter Coutinho Júnior confirmou, por meio de sua assessoria, o teor do memorando, mas informou que não concederia entrevista. O presidente da Funai, Antônio Fernandes Toninho Costa, foi questionado sobre o documento, mas não comentou o assunto.
A assessoria da Funai confirmou que Toninho Costa pediu uma reunião com o ministro Alexandre de Moraes para tratar do assunto. O Ministério Público Federal vai pedir a revogação da portaria do ministério. Na avaliação da procuradoria, seu teor é ilegal, fere a Constituição e a jurisprudência sobre o tema tratado pelo Supremo Tribunal Federal.
Pela manhã, o presidente Michel Temer defendeu a criação do Grupo Técnico Especializado. Segundo o presidente, o grupo não enfraquece a Funai. Ao ser questionado pela reportagem se o GTE significaria uma mudança no critério de demarcação de terras indígenas, Temer se mostrou irritado. "Você quer debater, então vamos debater", disse, quando já se retirava de evento realizado no Centro de Cana, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), em Ribeirão Preto (SP).