Envolto em uma grande polêmica jurídica, o livro Minha luta (Mein kampf), publicado por Adolf Hitler em duas partes, uma em 1925 e outra no ano seguinte, quando o ditador tinha apenas 36 anos, está sendo vendido no Centro de Belo Horizonte. Dividido em dois volumes, cada um ao preço de R$ 39,90, ele é o campeão de vendas entre revistas e publicações diversas expostas em banca na Praça Sete. Segundo um dos funcionários, o primeiro lote esgotou-se rapidamente e um novo pedido foi feito, pois a procura foi muita. “Tudo que tem a cara do Hitler na capa vende. E muito”, afirma o vendedor.
O livro chama a atenção não só pela foto imensa do ditador e ideólogo do nazismo que ilustra a capa, mas por não ter nenhuma informação sobre quem o editou. Ao contrário de todas as outras publicações, ele não tem o nome da editora, do tradutor e nem a ficha com os dados para a catalogação da publicação. Na contracapa, aparece apenas os números do ISBN, sigla do sistema internacional padrão que identifica numericamente todo e qualquer livro impresso no mundo. A explicação para esse mistério é a disputa jurídica que envolve Minha luta.
Em 2016, o livro caiu no domínio público e chegou a ser publicado e distribuído por uma editora de São Paulo, a Centauro Publicações, e também pela Saraiva e Geração Editorial. No entanto, por determinação da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, a partir de uma ação cautelar impetrada pelo Ministério Público fluminense, ele foi recolhido e proibido de ser editado e vendido no estado, sob pena de multa diária de R$ 5 mil. A decisão foi dada pelo juiz Alberto Salomão Júnior, para quem a “venda de livros que veiculam ideias e ideais nazistas fere gravemente a ordem pública” e são uma afronta à lei aprovada em 1989, que pune crimes resultantes de preconceito.
Desde então, o assunto continua polêmico em todo o país. O livro sumiu das prateleiras, mas pode ser comprado pela internet e, agora, em banca da capital mineira. Apesar de não ter dados sobre sua editora, ele foi impresso pela Discovery Publicações, que também vende a obra pela internet pelo mesmo preço da banca da Praça Sete. Procurada pela reportagem, a editora não respondeu ao pedido de entrevista feito por telefone e também não retornou e-mail enviado para a direção da empresa.
LIBERADO
Uma decisão anterior a essa da proibição, dada também pela Justiça fluminense, 10 anos antes, em 2006, liberava a publicação da obra. A ação contra a venda do livro de Hitler foi impetrada na época pela Federação Israelita do Rio de Janeiro (Firj) para impedir a Centauro de comercializar Minha luta e também um livro antissemita, Os protocolos do sábio de Sião, de autor desconhecido, publicado no começo do século 20. A Justiça, na época, liberou a publicação de Minha luta e proibiu o outro livro.
A Centauro então, conta o advogado da editora, Mário Villas Boas, fez uma edição do Minha luta, mas teve de suspender a publicação, pois os direitos autorais da obra pertenciam até então ao governo da Baviera, um dos estados federais da Alemanha. “O governo mandou uma carta bem mal-educada e tiramos a obra de circulação”, afirma. Os donos da Centauro, Almir e Adalmir Caparros Fagá, foram denunciados por crime de racismo por editar, distribuir e expor à venda esses dois livros, segundo o advogado da editora.
“A denúncia foi distribuída para a 28ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, que, ao analisá-la, concluiu ser criminosa em tese a publicação do primeiro, dado que, por ter autoria desconhecida, os editores chamavam para si a responsabilidade do conteúdo da obra. Quanto ao segundo, Minha luta, o ato era “atípico” (não criminoso), uma vez que o livro tinha autoria conhecida e, portanto, as opiniões nele contidas eram de responsabilidade de seu autor, não dos editores. Assim, por expressa decisão, já transitada em julgado, da 28ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, não há crime em editar, distribuir, expor à venda ou vender a obra em questão”, contesta Mário, que fez questão de destacar que os donos da editora não compactuam de ideais nazistas, apenas publicam com frequência documentos históricos e livros considerados polêmicos.
Para ele, a decisão de suspender a publicação, contestada por ele, mas ainda sem decisão da Justiça fluminense, é “duplamente irregular”. Segundo ele, é irregular porque o tipo de ação utilizada não tem previsão legal. “Uma ação com esse objeto teria que tramitar na esfera cível. E teria que apontar claramente um réu, o que não é o caso”, afirma. De acordo com ele, os réus são as empresas, o que só pode ocorrer em caso de crime ambiental.
“Em segundo lugar, a decisão parte da premissa de que existe a possibilidade jurídica de que a publicação da obra em questão seja considerada criminosa. Mas ela não existe dada a existência da decisão judicial que transitou em julgado em 2006”, afirma. De acordo com ele, essa decisão não pode ser modificada por outra, nem mesmo de instância superior. “Menos ainda por uma de primeiro grau”, assegura.
GUIA DO NAZISMO
O primeiro volume de Mein kampf, título original em alemão, foi escrito nos noves meses em que Hitler esteve preso depois de uma tentativa fracassada dos nazistas de tomar o poder na Alemanha, em abril de 1924. O segundo foi escrito quando ele já estava fora da prisão e editado em 1926. No livro, considerada a obra mais odiada em todo o mundo, Hitler expressa suas ideias nacionalistas e antissemitas adotadas pelo Partido Nazista. Mein kampf era e é até hoje considerado um guia ideológico para simpatizantes e adeptos do nazismo. O título original da obra era Quatro anos e meio de luta contra mentiras, estupidez e covardia, porém, Max Amann, o encarregado das publicações nazistas, decidiu abreviá-lo para Minha luta.