Em meio à crise que assola o país, trajetória de Tancredo Neves é revisitada em novo livro

Mineiro participou de alguns dos momentos mais importantes e tensos da história brasileira no século 20

Bertha Maakaroun
Quando disputou o governo de Minas, em 1982, ao lado de Hélio Garcia, derrotando Eliseu Resende, Tancredo já mirava a Presidência da República. Dois anos mais tarde, ele seria eleito indiretamente para o cargo - Foto: Arquivo EM/D.A Press

“Canalhas! Canalhas! Filho da puta!”, reagiu Tancredo Neves, líder do governo João Goulart na Câmara dos Deputados, quando, na madrugada de 2 de abril de 1964, o presidente do Congresso Nacional, Auro Moura Andrade, anunciava o que chamou de “vacância” da Presidência da República. “Não é verdade, não é verdade!”, gritava do plenário o líder, ignorado pelo senador que conduzia a sessão. Consumava-se a deposição de João Goulart, apesar de a Constituição Federal em vigor indicar que o cargo só poderia ser considerado vago se o presidente estivesse fora do território nacional. Não era o caso. Jango deslocara-se de Brasília ao Rio Grande do Sul, onde imaginou poderia constituir um núcleo de resistência à quartelada em curso.


A obra Tancredo Neves, o príncipe civil, do jornalista Plínio Fraga, recém-lançada pela Editora Objetiva reúne pesquisa, entrevistas e um relato da cultura política patrimonialista, herança portuguesa enraizada na sociedade, no sistema político e no governo brasileiro. Nela emergem as habilidades de conciliação desse mineiro de São João del-Rei, que participou dos mais importantes e tensos momentos da história brasileira do século 20, não deixando herdeiros em sua capacidade de conciliação e costura política, indispensável em momentos de crise aguda como vive hoje o país. Internado na véspera de sua posse na Presidência da República, para qual foi eleito por via indireta, morreu em 21 de abril de 1985, por uma sucessão trágica de imperícias médicas. Assumiu o vice José Sarney, egresso da Arena, cristão novo no PMDB.

A transição democrática seguiu seu rumo.

Plínio Fraga assim descreve Tancredo: “Conservador na economia e na cultura, liberal na política, cultivava a democracia como único valor essencial. Empregou parentes no governo, aliou-se a coronéis antigos da política, mentiu por estratégia quando lhe foi necessário, seguiu a cartilha dos financiamentos de campanha obscuros. Apesar disso, foi um dos maiores talentos da vida pública nacional. Seu dom mostrava-se silencioso nas articulações, mas estrondoso na tribuna”.

Ministro da Justiça de Getúlio Vargas, aliado a Juscelino Kubitschek, primeiro ministro na breve experiência parlamentarista no governo de Jango e líder de governo na Câmara dos Deputados, num espaço de 10 anos – entre 1954 e 1964 –, Tancredo Neves testemunhou o ocaso precoce do segundo governo nacional democraticamente eleito. Havia acompanhado no Palácio do Catete os últimos momentos de Vargas antes de seu suicídio. Foi a saída política face à articulada trama arquitetada por udenistas, segmentos da imprensa, empresariado e militares para encurralar o líder popular, imbatível nas urnas. Tancredo Neves vira o “mar de lama” de que era acusado o governo nacionalista desenvolvimentista de Vargas – erroneamente identificado pelas forças econômicas conservadoras como uma “guinada à esquerda” –, transformar-se num oceano de manifestações e comoção popular. Manifestantes furiosos depredaram a sede da Tribuna da Imprensa, o jornal do furibundo adversário de Vargas, o udenista Carlos Lacerda. Multidões foram às ruas em pranto incontrolável.

Tancredo igualmente assistiu ao legado político de Getúlio Vargas impulsionar em 1955 a candidatura à Presidência da República de seu aliado, o governador de Minas Juscelino Kubitschek. “Acho que o suicídio teve realmente como consequência a eleição de Juscelino. O suicídio também adiou 64. Se não fosse o suicídio de Vargas, 54 já seria 64. Você verifica: as lideranças de 64 são as mesmas lideranças de 54.
Com os mesmos objetivos. Sessenta e quatro foi uma revolução de direita, uma revolução conservadora, uma revolução nitidamente pró-americana, feita inclusive com a participação deles, americanos, que já tinham participado em 54”, analisou Tancredo Neves em entrevista a Valentina da Rocha Lima e Plínio de Abreu Ramos na obra Tancredo fala de Getúlio, citada por Plínio Fraga.

O inconformismo udenista radical transbordava quando, em 1961, o presidente eleito Jânio Quadros renunciou: a fugaz vitória eleitoral de sua “vassoura” nas eleições de 1960 escapava-lhe por entre os dedos. Naquele 1961 pós-renúncia do arauto da “assepsia na política”, emergia da cena mais uma vez o mineiro de São João del-Rei, de estatura pequena, que se definia como “cristão-social-reformista”. Tancredo registrava a movimentação da caserna aliada ao empresariado nacional e aos interesses multinacionais – principalmente norte-americanos – para impedir a posse do vice-presidente da República, João Goulart, o Jango. O golpe, lenta e gradualmente tramado, com o “envenenamento” crescente da chamada opinião pública, ou mais precisamente a classe média conservadora contra os governos de herança política varguista, viria a ser postergado com a adoção do “parlamentarismo” de curta vida.

Tancredo Neves se tornou por nove meses primeiro-ministro, dividindo as atribuições do governo com Jango. Confrontado por protestos contra a inflação e manifestações populares por reajustes salariais ao mesmo tempo em que se aprofundava a radicalização da luta política entre os defensores das reformas de base – constitucional, agrária, urbana, bancária e tributária – propostas por Jango e os setores mais conservadores e à extrema-direita que a elas se opunham, o gabinete de Tancredo se demitiu em junho de 1962. Em outubro daquele ano, ele se elegeu deputado federal pelo PSD mineiro.

Restaurado o sistema presidencialista após a consulta popular realizada em 6 de janeiro de 1963, Tancredo assumiu a liderança do governo Jango na Câmara dos Deputados. Foi um dos poucos parlamentares de oposição ao golpe militar que não foi cassado pelos atos institucionais que se sucederam na ditadura – apesar de ter sido um entre os 72 parlamentares que se abstiveram de votar, em 11 de abril de 1964, em Castello Branco como presidente.

Plínio Fraga reconstrói as relações, inclusive de parentesco, desse homem com o general Humberto Castello Branco, em favor de quem intercedeu para a sua promoção a general quando primeiro-ministro de Jango. Além de amigo pessoal, após longa convivência com o general em Belo Horizonte, Tancredo atendera ao pedido do sobrinho Francisco Dornelles, cuja tia paterna, Amélia, era casada com Cândido Castello Branco, irmão de Humberto Castello Branco.
Em solenidade, Tancredo ao lado de Figueiredo - Foto: Arquivo EM/D.A Press

A Presidência na mira


Quando disputou o governo de Minas em 1982 e derrotou Eliseu Resende, Tancredo Neves já mirava a Presidência da República. Plínio Fraga relata na obra Tancredo Neves, o Príncipe Civil como, um ano antes, em sigilo, ele estreitava o diálogo com a oposição, inclusive com o então presidente João Baptista Figueiredo.

O autor atribui a Jarbas Passarinho (PDS-PA) o depoimento: “Tancredo passou a ser encarado como uma possibilidade na sucessão presidencial. As palavras que o presidente Figueiredo já usava em relação a ele evidenciavam clara mudança de julgamento. Havia até certa insinuação ao nome de Tancredo como possível solução pacificadora”.

Mas publicamente Tancredo Neves, às vésperas da campanha ao Palácio da Liberdade, mantinha críticas duras ao governo, chegando a irritar Figueiredo quando sugeriu que os ministros da área econômica haviam sido escolhidos por empresas multinacionais. Em passagem do livro, Plínio reproduz um diálogo, em que Figueiredo reclamava a Passarinho: “Tancredo me fez ataques pessoais”, ao que Tancredo, teria rebatido: “Se o presidente fosse do nosso ramo, entenderia”. O ministro Golbery do Couto e Silva, chefe do gabinete Civil, contemporizava: “Muitos dos nossos não entendem a posição de Tancredo. É claro que até as eleições ele tem que ser da oposição. O que ele ganha não sendo?” O governo autoritário-militar se desintegrava e afundava na recessão. Não havia bolo para repartir. O regime que torturou e desapareceu com militantes de oposição mostrava a sua exaustão.

O governo de Minas era o primeiro passo, não o fim. Plínio Fraga expõe em seu livro a relação cada vez mais estreita de Tancredo com militares, o que levou a acusações de traição da causa em defesa das eleições diretas para a Presidência da República. “A agenda secreta de Tancredo era protegida por muitas mentiras e aberta para poucos. Francisco Dornelles contou que o tio, depois de eleito governador, visitava Brasília quase que semanalmente (…) Reservava tempo para se encontrar com Leitão de Abreu (que substituiu Golbery a partir da queda deste do Gabinete Civil em agosto de 1981), e essas conversas atravessaram os anos, até a campanha das diretas, para a qual concordavam que não havia clima”, considerou o autor. A emenda Dante de Oliveira não passaria. Mas as condições para a candidatura indireta estavam dadas.

Em 1984, Tancredo teve um segundo encontro com Figueiredo, em que tentou se colocar como um interlocutor para um nome de consenso entre oposição e situação. Segundo Antônio Delfim Netto, ministro do Planejamento na transição, o último presidente militar via no mineiro um político “civilizado”, que não buscava “vingança”. Ao próprio Delfim, Tancredo afirmaria, meses depois, durante um almoço na casa do empreiteiro da construção civil Sebastião Cantídio Drumond: “Eu só serei candidato (à Presidência) se for contra o doutor Paulo Maluf. Não disputarei com ninguém a não ser com ele. Nós vamos expô-lo à execração pública. É uma pena, no entanto é o que vai acontecer”. Paulo Maluf, 30 anos mais tarde, afirmaria sobre a disputa: “Vou te dar uma revelação bombátisca. Tancredo não teve 480 votos. Teve um só. O meu. Porque, se eu tivesse claudicado, se tivesse conspirado, se tivesse aceitado conselhos de políticos matreiros para melar aquele Colégio Eleitoral, não tinha havido Colégio Eleitoral nem eleição”.

Assim o autor Plínio Fraga desmistifica o jogo político eleitoral. E também o financiamento de campanhas. Segundo ele o caixa da campanha de Tancredo Neves foi abastecido por diversos empreiteiros e banqueiros – portanto, não só Maluf fôra o “candidato do milhão” – estimando uma arrecadação de US$ 45 milhões em valores de hoje. Depois de ter acesso a documentos confidenciais, mostrou como os Estados Unidos acompanharam a sucessão indireta em relatórios que indicaram a mudança de política em relação ao regime militar que ajudaram a implantar no país. Henry Kissinger, assessor internacional de Ronald Reagan, desembarcara no Brasil em setembro de 1984 cioso do favoritismo da oposição. Tanto que se reuniu antes com Tancredo Neves e só depois com Figueiredo.

Não faltaram turbulências, bombas, incêndios e reação da linha dura do regime militar, que tentou obstaculizar a candidatura do mineiro. Mas, como observa Plínio Fraga em sua obra, Tancredo manejou e contornou a crise militar de 1984. Mas não driblou o destino. Lembra-se, por isso, de Napoleão Bonaparte em uma de suas correspondências a Josefina: “Reconheço o papel do acaso no destino dos acontecimentos. Quanto mais se é grande, tanto menos se há de ter vontade própria, pois passamos a depender dos acontecimentos e das circunstâncias”.

 

 

.