A corrupção que assola a política nacional e indigna os brasileiros está atracada no país desde os tempos do Brasil colônia. E os mesmos estratagemas usados pela elite colonial persistem até hoje nas práticas ilícitas daqueles que se dizem representantes do povo. As constatações integram um trabalho inédito no país, em que a historiadora Adriana Romeiro vasculhou documentos em arquivos e bibliotecas do Brasil, Portugal e Espanha para investigar a corrupção praticada por aqui, entre os séculos 16 e 18. O resultado é o livro Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII, que será lançado no próximo dia 26, em Belo Horizonte.
“Dizia-se que era preferível ser roubado por um pirata em alto-mar do que aportar no Brasil. A elite colonial é a mesma que está hoje no poder, com a mesma mentalidade, de estar numa terra em que pode enriquecer sem qualquer escrúpulo”, afirma a historiadora, que concedeu entrevista exclusiva ao Estado de Minas. Adriana Romeiro é doutora em história pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Numa pesquisa minuciosa iniciada em 2013, quando se dedicava a um pós-doutorado na Espanha, a autora levantou toda a documentação datada entre os séculos 16 e 18 em que os governadores no Brasil são acusados de alguma prática ilícita. São textos que vão desde sátiras, sermões, poemas e ofícios com acusações aos governantes da época. “Descobri coisas assustadoras, desde o envolvimento dos governadores em escândalos sexuais até casos mais escabrosos de enriquecimento ilícito”, conta.
De que forma a corrupção se manifestava no Brasil colonial?
O conceito de corrupção era muito mais abrangente e também incluía questões morais e religiosas.
E o que essa documentação aponta?
Descobri o enriquecimento ilícito de governadores, autoridades e políticos. Mem de Sá (governador-geral do Brasil entre 1558 e 1572), por exemplo, já era acusado de enriquecimento ilícito. No Rio de Janeiro, dizia-se que os mercadores de escravos que saíam da África e seguiam para o Rio da Prata e tinham que parar no Rio para abastecer já sabiam que tinham que pagar propina ao governador da capitania. Para que essas embarcações parassem na costa era exigido algum tipo de contribuição ilícita, como o direito de subir a bordo e escolher os melhores escravos.
Há outros corruptos que chamam a atenção?
Dedico uma parte do livro a dom Lourenço de Almeida, que governou Minas entre 1720 e 1732. Ele era acusado de ter constituído fortuna a partir do ouro e diamantes por meio de práticas ilícitas. Em pouco tempo estava riquíssimo, com mais de 100 contos de réis, que era um valor considerável para a época.
O que vemos hoje é a multiplicação de políticos como dom Lourenço?
Nem dom Lourenço chegaria a tanto como chegaram Sérgio Cabral Filho, Eduardo Cunha, numa indiferença própria da nossa classe política desde o século 16.
É possível identificar um ambiente que favoreça a corrupção?
A corrupção sempre esteve presente na história do Brasil. Uma das razões é a distância de Portugal. Por estar longe do centro político, a vigilância era muito frágil e precária. É preciso lembrar que o Brasil sempre foi a terra de oportunidades.
Quais eram os mecanismos para coibir e punir essas práticas no período colonial?
Cada vez que o governador terminava o seu mandato de três anos, ele tinha que ser auditado, investigado pelo ouvidor local. Esse mecanismo chamava juízo de residência e devassava os procedimentos dos governantes e detentores de cargos administrativos. Só que a gente sabe que, na prática, isso não funcionava. O governador investigado acabava subornando a autoridade responsável pela devassa.
Esses crimes se mantinham impunes?
A impunidade estava prevista na lei. Casos em que investigar e punir alguém pudesse ser algo tão catastrófico, que poderia prejudicar o bem comum, era preferível fazer vistas grossas. No Brasil, a impunidade era também um privilégio que o rei concedia às elites locais.
Havia, então, um interesse da Coroa portuguesa em manter a corrupção no Brasil?
Pela corrupção, nossas elites puderam de alguma forma garantir os interesses econômicos e políticos e participar do jogo político e do processo de colonização. Através de tretas e manhas, homens comuns ascenderam socialmente e adentraram as elites. Foi isso que deu flexibilidade ao império português, fazendo com que ele durasse tantos anos. Se a política da Coroa fosse implantada de forma inflexível, muito rígida, o Império não teria resistido. A corrupção teve efeito benéfico e positivo para Portugal e, por isso, essa tolerância da Coroa em relação às práticas ilícitas das nossas elites.
Mas não se trata de um fenômeno exclusivo do Brasil...
A corrupção é um problema do mundo todo, mas, no Brasil, em razão do nosso passado colonial, isso é mais forte. O contexto colonial exigiu que os brasileiros de modo geral soubessem desenvolver estratégias e artifícios para burlar o pacto colonial.
as pessoas hoje estão muito mais exigentes e vão desenvolver uma intolerância às práticas corruptas.
____________________________________________________________________________________________________
Cidade do Rio de Janeiro, de autoria desconhecida, no fim do século 17. Mestres de navios diziam preferir cair nas garras dos piratas e holandeses do que enfrentar a cobiça dos governadores do Rio, que exigiam propina para que os navios pudessem atracar no porto.