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Estado de Minas HERANÇA MALDITA

Corrupção está enraizada no Brasil desde o período colonial, revela historiadora

Entrevista com Adriana Romeiro: prática é fruto de uma elite que se perpetua no poder para se enriquecer sem escrúpulos


postado em 13/08/2017 07:40 / atualizado em 13/08/2017 08:07

"O governador investigado acabava subornando a autoridade responsável pela devassa no período colonial" - Adriana Romeiro, historiadora (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

A corrupção que assola a política nacional e indigna os brasileiros está atracada no país desde os tempos do Brasil colônia. E os mesmos estratagemas usados pela elite colonial persistem até hoje nas práticas ilícitas daqueles que se dizem representantes do povo. As constatações integram um trabalho inédito no país, em que a historiadora Adriana Romeiro vasculhou documentos em arquivos e bibliotecas do Brasil, Portugal e Espanha para investigar a corrupção praticada por aqui, entre os séculos 16 e 18. O resultado é o livro Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII, que será lançado no próximo dia 26, em Belo Horizonte.


“Dizia-se que era preferível ser roubado por um pirata em alto-mar do que aportar no Brasil. A elite colonial é a mesma que está hoje no poder, com a mesma mentalidade, de estar numa terra em que pode enriquecer sem qualquer escrúpulo”, afirma a historiadora, que concedeu entrevista exclusiva ao Estado de Minas. Adriana Romeiro é doutora em história pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Numa pesquisa minuciosa iniciada em 2013, quando se dedicava a um pós-doutorado na Espanha, a autora levantou toda a documentação datada entre os séculos 16 e 18 em que os governadores no Brasil são acusados de alguma prática ilícita. São textos que vão desde sátiras, sermões, poemas e ofícios com acusações aos governantes da época. “Descobri coisas assustadoras, desde o envolvimento dos governadores em escândalos sexuais até casos mais escabrosos de enriquecimento ilícito”, conta.

 

De que forma a corrupção se manifestava no Brasil colonial?

O conceito de corrupção era muito mais abrangente e também incluía questões morais e religiosas. Mas, ao levantar toda a documentação em que os governadores são acusados de alguma prática ilícita, entre os séculos 16 e 18, descobri que não só já havia o conceito de corrupção como também englobava práticas que hoje associamos a isso, como tráfico de influência, nepotismo, favorecimento e abuso de autoridade. As práticas que vemos hoje na política brasileira já remontam ao século 16.

E o que essa documentação aponta?

Descobri o enriquecimento ilícito de governadores, autoridades e políticos. Mem de Sá (governador-geral do Brasil entre 1558 e 1572), por exemplo, já era acusado de enriquecimento ilícito. No Rio de Janeiro, dizia-se que os mercadores de escravos que saíam da África e seguiam para o Rio da Prata e tinham que parar no Rio para abastecer já sabiam que tinham que pagar propina ao governador da capitania. Para que essas embarcações parassem na costa era exigido algum tipo de contribuição ilícita, como o direito de subir a bordo e escolher os melhores escravos.

Há outros corruptos que chamam a atenção?

Dedico uma parte do livro a dom Lourenço de Almeida, que governou Minas entre 1720 e 1732. Ele era acusado de ter constituído fortuna a partir do ouro e diamantes por meio de práticas ilícitas. Em pouco tempo estava riquíssimo, com mais de 100 contos de réis, que era um valor considerável para a época. Encontrei o testamento dele em Portugal e o inventário. Com base na reconstituição do patrimônio, consegui identificar o enriquecimento ilícito, dando razão às sátiras que já denunciavam isso. Havia dois tipos de requisitos para que a pessoa pudesse roubar sem ser importunada no Brasil colônia. Ela deveria agir com discrição e respeitar determinados limites. Dom Lourenço transgrediu tudo isso e chegou a extrair diamantes sem notificar a Coroa.

O que vemos hoje é a multiplicação de políticos como dom Lourenço?

Nem dom Lourenço chegaria a tanto como chegaram Sérgio Cabral Filho, Eduardo Cunha, numa indiferença própria da nossa classe política desde o século 16.

É possível identificar um ambiente que favoreça a corrupção?

A corrupção sempre esteve presente na história do Brasil. Uma das razões é a distância de Portugal. Por estar longe do centro político, a vigilância era muito frágil e precária. É preciso lembrar que o Brasil sempre foi a terra de oportunidades. No início do século 17, em Minas, tem a chegada de milhares de camponeses analfabetos, que, em 10 anos, ficam muito ricos. São eles que integram a elite local e mandam na política e na economia. Eles viam o Brasil como uma terra a ser explorada, roubada e espoliada. O Brasil também foi até recentemente um país escravocrata. Para manter uma instituição como a escravidão por tanto tempo, é preciso que você não tenha o menor escrúpulo moral em relação ao outro.

Quais eram os mecanismos para coibir e punir essas práticas no período colonial?

Cada vez que o governador terminava o seu mandato de três anos, ele tinha que ser auditado, investigado pelo ouvidor local. Esse mecanismo chamava juízo de residência e devassava os procedimentos dos governantes e detentores de cargos administrativos. Só que a gente sabe que, na prática, isso não funcionava. O governador investigado acabava subornando a autoridade responsável pela devassa.

Esses crimes se mantinham impunes?

A impunidade estava prevista na lei. Casos em que investigar e punir alguém pudesse ser algo tão catastrófico, que poderia prejudicar o bem comum, era preferível fazer vistas grossas. No Brasil, a impunidade era também um privilégio que o rei concedia às elites locais. As elites locais prestavam serviços aos reis, participavam da obra de colonização, abriam estradas, faziam o comércio funcionar. Em troca desse serviço, ganharam o direito da impunidade. O contrabando foi, de longe, a prática ilícita mais comum no Brasil. O rei sabia, as autoridades envolvidas na repressão ao contrabando praticavam contrabando, as elites lucravam muito e o rei fazia vistas grossas. Havia um abismo entre a norma e a prática.

Havia, então, um interesse da Coroa portuguesa em manter a corrupção no Brasil?

Pela corrupção, nossas elites puderam de alguma forma garantir os interesses econômicos e políticos e participar do jogo político e do processo de colonização. Através de tretas e manhas, homens comuns ascenderam socialmente e adentraram as elites. Foi isso que deu flexibilidade ao império português, fazendo com que ele durasse tantos anos. Se a política da Coroa fosse implantada de forma inflexível, muito rígida, o Império não teria resistido. A corrupção teve efeito benéfico e positivo para Portugal e, por isso, essa tolerância da Coroa em relação às práticas ilícitas das nossas elites.

Mas não se trata de um fenômeno exclusivo do Brasil...

A corrupção é um problema do mundo todo, mas, no Brasil, em razão do nosso passado colonial, isso é mais forte. O contexto colonial exigiu que os brasileiros de modo geral soubessem desenvolver estratégias e artifícios para burlar o pacto colonial. As nossas elites passaram a perna nos portugueses. Havia esse divórcio entre a sociedade e o Estado, que só aparecia para cobrar impostos e barrar toda a iniciativa privada. A classe política reflete a mentalidade que está aí desde o século 16. Da mesma forma, no passado, a corrupção só pôde existir porque estava disseminada na sociedade. Acredito que
as pessoas hoje estão muito mais exigentes e vão desenvolver uma intolerância às práticas corruptas.


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(foto: Reprodução)
(foto: Reprodução)
Retrato de Salvador Correia de Sá e Benevides, três vezes governador da capitania do Rio de Janeiro (1637-1642, 1648 e 1659-1660). As acusações contra ele vão desde proteger os parentes e amigos com proventos indevidos, a oprimir o povo com tributos ilegais administrados por ele e mandar construir fortificações precárias por preços exorbitantes, levando ao enriquecimento ilícito.






(foto: Reprodução/Rugendas)
(foto: Reprodução/Rugendas)
Gravura de Johann Moritz Rugendas: mineração de diamantes perto do morro de Itacolomi. Os diamantes da capitania de Minas Gerais atraíram a cobiça dos governadores, que se envolveram em negócios irregulares







(foto: Reprodução)
(foto: Reprodução)
Cidade do Rio de Janeiro, de autoria desconhecida, no fim do século 17. Mestres de navios diziam preferir cair nas garras dos piratas e holandeses do que enfrentar a cobiça dos governadores do Rio, que exigiam propina para que os navios pudessem atracar no porto


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