Uma licitação na Bahia para contratar professores de corrida e caminhada para juízes e servidores – que acabou suspensa na última semana por escandalizar o Brasil – chamou a atenção para uma prática que tem sido recorrente no serviço público do país. Trata-se de comprar itens sem a devida comprovação da necessidade e relação com os serviços prestados à população.
Em plena crise econômica, multiplicam-se no país licitações para adquirir produtos questionáveis, como flores e arranjos decorativos, vinhos, cervejas, camarões, sofás e até camas e cadeira de luxo para servir a quem deveria trabalhar para o povo.
Também neste mês, o governo do Rio de Janeiro, que está devendo salários a servidores por causa da crise financeira, abriu concorrência para contratar uma empresa que forneça jatinhos para conduzir o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) em suas viagens oficiais. O desembolso previsto é de R$ 2,5 milhões no ano. O jato pedido deve ter banheiro privativo, poltronas giratórias e altura mínima da cabine de 1,65m.
O Congresso Nacional pretende gastar R$ 1 milhão com camas, colchões, sofás e cadeiras para os parlamentares. Este mês, o Senado abriu licitação para comprar R$ 920.479,05 em cadeiras e sofás modulares para a Casa. Os custos de cada item variam de R$ 980 a R$ 1,9 mil.
Já a Câmara dos Deputados lançou pregão eletrônico em julho para comprar 48 conjuntos de cama box de casal “queen size” a um preço estimado de R$ 1.311,33, e outras 12 camas boxes “king size” por mais R$ 1.462 cada. O custo total das aquisições para “assegurar a habitabilidade dos imóveis funcionais da Câmara dos Deputados” é estimado em R$ 80.487,84.
Também com mobiliário, o Tribunal de Justiça do Paraná pretende gastar R$ 4,7 milhões. O valor é para comprar poltronas, cadeiras e sofás para o Poder Judiciário do estado. Só no primeiro lote, que tem custo estimado de R$ 2,7 milhões, são pedidas 1,6 mil poltronas giratórias a um custo de R$ 1 mil cada. O item mais caro do pedido é a cadeira giratória tipo presidente, que custa R$ 3.656,90 a unidade. Serão compradas 180 delas.
Recentemente, a Câmara Municipal de Belo Horizonte também gastou dinheiro com cadeiras novas. Para igualar o conforto dos vereadores aos dos senadores, a Casa comprou poltronas de R$ 4,7 mil cada. As 50 unidades foram entregues em julho a um custo de R$ 171 mil e se somaram a uma reforma de R$ 1,2 milhão feita no plenário, agora revestido de mármore branco e vidros espelhados, entre outros luxos.
Na Assembleia Legislativa de São Paulo, uma tentativa semelhante foi barrada com a mudança de gestão. Em abril, a Alesp cancelou uma licitação de R$ 1,54 milhão para a compra de 920 cadeiras giratórias de luxo.
No ano passado, o Ministério Público Federal (MPF) licitou iPhones e celulares para seus membros. Também foram pedidos iPads e celulares funcionais. O custo estimado foi de R$ 2 milhões.
Peixe e vinho
Outra área que tem despertado grandes licitações é a da alimentação e, em especial, a de bebidas. A Prefeitura de São Francisco de Assis, no interior do Rio Grande do Sul, abriu licitação para comprar 32,4 mil garrafas de vinho espumante. Foram escolhidos os rótulos Carta Nevada, com uva Macabeo, Xarello e parellada, e cava-seleccion ou cordon rosado, com uvas Trepat e Garnacha, que “harmoniza com carnes suaves, arroz e massa”.
Depois de repercussão negativa, a prefeitura admitiu que a compra foi um equívoco. Os gastos previstos seriam de até R$ 1,45 milhão, segundo valor dos vinhos no mercado de atacado. O mais curioso é que a cidade tem 19.495 habitantes, ou seja, seria uma garrafa e meia por morador.
Da mesma forma, a Câmara Municipal de Ouro Preto, na Região Central de Minas, abriu licitação para comprar vinho e cerveja. Depois de críticas, retificou o edital, retirando da concorrência os 390 litros de cerveja pilsen alto padrão e os 130 litros de vinho tinto cabernet. Também o filé-mignon foi substituído por “carne de boi do tipo alcatra ou contrafilé ou maminha”.
Também em Minas Gerais, chamaram a atenção licitações do gabinete do governador em janeiro e março para comprar pescados como filés de tilápia, badejo, robalo, linguado. Entre os itens mais caros estão 320 quilos de filé de salmão e os camarões-rosa GG e GGG. A contratação pedida é por demanda “conforme necessidades dos palácios governamentais”.
Flores e festa para Minas
Este mês, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) publicou edital para comprar 20 coroas de flores, 145 arranjos para mesa, aparador e chão e cinco buquês, a um custo de R$ 78.650. Sem estimar preço, a Câmara Municipal de Ouro preto também abriu pregão para comprar jardineiras, arranjos, flores naturais e buquês “para atender às necessidades nos eventos protocolares” da Casa.
A Prefeitura de Ribeirão das Neves, na Grande BH, que em janeiro decretou calamidade financeira, também abriu uma licitação polêmica. Quer contratar uma empresa para cuidar de festas na cidade no decorrer do ano a um custo previsto de R$ 1 milhão. Em outra concorrência, de R$ 53 mil, o município prevê a contratação de show pirotécnico.
Interesse público deve ser observado, dizem especialistas
Tantas variedades de compras podem representar desvio de finalidade da administração pública, segundo especialistas no assunto.
O presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, Fabrício Motta, explica que a principal questão a ser verificada é se existe interesse público. “É claro que a contratação deve ser voltada a atender às finalidades públicas”, disse. Segundo Motta, algumas funções podem exigir compras consideradas inicialmente de luxo, mas ligadas a necessidades. Por exemplo, um chefe do Executivo demandando estrutura para receber chefes de Estado.
Mesmo assim, em tempos de crise, segundo o advogado, essas necessidades devem ser revistas. “Primeiro tem que se identificar onde está o interesse público e depois moderar se essa necessidade deve ser atendida em um modelo de crise econômica. Você tem que escolher prioridades para alocar os poucos recursos. Qual o sentido de se manter gastos exorbitantes diante de outras demandas prioritárias, como saúde e educação?”, questiona.
O coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Defesa do Patrimônio Público de Minas Gerais, José Carlos Fernandes Junior, diz que a administração pública deve obedecer a diretrizes e metas para atender com qualidade à população. Nesse sentido, as licitações devem se prestar aos interesses coletivos. “Toda vez que se detectam situações em que se percebe o desvio de finalidade no emprego do recurso público em favor de interesses que não correspondem ao que avaliamos como em prol da coletividade, o Ministério Público atua”, afirmou o promotor.
De acordo com o coordenador do MP, existem hoje 20.983 inquéritos civis em Minas Gerais envolvendo recursos públicos, a maioria deles se refere a compras por órgãos estaduais ou municipais. “Temos uma atuação cotidiana, os promotores estão espalhados nas 300 promotorias do patrimônio público fiscalizando a atuação dos gestores”, garante.