Jornal Estado de Minas

Censura volta ao debate nacional com projetos de lei


Dada como abolida após o fim do regime militar – que mantinha um departamento específico para avaliar toda a produção cultural brasileira e dizer o que a população podia ou não ver, ler e ouvir – a censura voltou ao debate. O motivo são projetos de lei e regulamentação de normas já existentes que tentam estabelecer no país algum tipo de controle e punição para manifestações artísticas consideradas “impróprias” e, principalmente, as campanhas que têm sido feitas por parlamentares das bancadas evangélicas e movimentos conservadores contra obras de arte e peças de teatro, levando inclusive à suspensão da exibição e ao confisco de algumas delas Brasil afora.

O assunto preocupa quem atua no campo da cultura e um movimento nacional contra toda forma de censura está sendo articulado e deve ser lançado na capital mineira – que resistiu às pressões para que a exposição de Pedro Moraleida, no Palácio das Artes, fosse suspensa – no dia 21 de novembro, em um ato com a presença de artistas e debates. Uma carta-manifesto produzida por artistas e críticos de arte, que teve a adesão de diversos setores da sociedade civil, – para fazer frente a essa tentativa de censura foi lançada essa semana –, já está disponível na internet (www.pelademocracia.com) para quem quiser aderir. Até a banda irlandesa U2 entrou na campanha. No show dessa semana, em São Paulo, o baterista Larry Mullen Jr. usou uma camiseta onde se lia “‘censura nunca mais”’.

O temor é que haja uma caça às bruxas e uma repercussão negativa sobre a produção cultural – como aconteceu após o golpe de 64 – e foi responsável pela destruição de filmes, confisco de livros em bibliotecas públicas, LPs riscados e proibição de mostras de arte e peças de teatro. E também corte de verbas, controle seletivo em editais, isolamento do Brasil das discussões artísticas, imigração de artistas de renome e descrédito de instituições públicas no circuito internacional.

A professora da escola de Belas Artes da UFMG, Yacy-Ara Froner , aponta ainda para o risco de volta de práticas como as engendradas pelo Partido Nazista da Alemanha, nos anos 1930, que passou a perseguir o que considerava ser uma “arte degenerada”, que nada mais era do que produções feitas por movimentos vanguardistas modernos e que tinham entre seus representantes artistas como Picasso. “Arte Degenerada” foi o título de uma mostra montada pelos nazistas em Munique, em 1937, em que as obras modernistas eram acompanhadas de faixas e rótulos ridicularizando as peças expostas, inflamando e produzindo ódio na opinião pública.

Para ela, essa onda está atrelada a um contexto nacional maior.

“Muitas vezes, o mentor ou o grupo que organiza os atos ou as críticas públicas nem ao menos visitou a exposição sobre a qual emite opiniões. Tampouco, conhece o lugar artístico de onde a obra fala”. E quando tem acesso, segunda ela, as observa a partir de um olhar tendencioso, procurando nelas a evidência de “supostos” crimes contra a moral e os bons costumes”.

Atenção

Na avaliação da professora, que se diz extremamente preocupada com esses acontecimentos, o foco moralista de crítica à cultura e à liberdade de expressão artística tem vários objetivos, entre eles desviar a atenção dos problemas reais que o país enfrenta e criar uma bandeira “moralizante” para arrebatar seguidores e futuramente convertê-los em eleitores. Yacy-Ara defende a edução e discussão ampla com segmentos religiosos sobre obras artísticas para reverter o preconceito.

“Temos que unir aqueles que querem preservar a liberdade de expressão artística em ações coletivas e educar aqueles que não entendem as obras artísticas apresentadas para que esses indivíduos não sejam massa de manobra de políticos e pessoas inescrupulosas”. Para ela, essa onda deve ser encarada com seriedade, pois o cerceamento da liberdade de expressão artística é uma das marcas do totalitarismo.

Também temeroso a respeito do crescimento de uma “onda persecutória” o Conselho Estadual de Política Cultural de Minas Gerais divulgou na sexta-feira uma carta expressando sua preocupação com as recentes manifestações contrárias a exposições artísticas realizadas em alguns municípios do Brasil, em particular, em Belo Horizonte, no Palácio das Artes, onde ficarão expostas até dia 19 de novembro as telas de Moraleida.

“Trata-se de uma afronta à liberdade de expressão e às artes de maneira geral. Há uma clara distorção do sentido da manifestação artística quando nela se vê indução a práticas criminosas ou moralmente reprováveis. Veementemente assinalamos uma tentativa de retorno da censura e intimidação de artistas, expositores e apreciadores da arte.

Nesse contexto, o Conselho repudia a manipulação escancarada da realidade, com interesses escusos a criação de uma onda persecutória, que confunde e acirra animosidades desnecessárias.”, diz a carta assinada pelo conselho, que reúne representantes de diversos segmentos culturais.

 

‘Arte degenerada’

Sombras do passado com ecos no presente

» O painel Guevara vivo ou Morto, do artista Claúdio Tozzi, exposto no IV Salão Nacional de Arte Contemporânea de Brasília, em 1967, foi parcialmente destruído a machadadas por um grupo radical de extrema direita.

» A mostra dos artistas selecionados para a representação brasileira à 4º Bienal de Paris, no MAM-RJ, em 1969, foi suspensa por causa da inclusão de uma foto de Evandro Teixeira que mostrava o tombo de moto de um oficial da Força Aérea Brasileira. A repercussão internacional foi tão grande que artistas do Brasil e do mundo inteiro se uniram para boicotar a Bienal de São Paulo realizada no mesmo ano.

» O então ministro da Cultura e reitor da Universidade do Paraná, Flávio Suplicy de Lacerda, no período de 1964 a 1966, manda arrancar da biblioteca da instituição várias páginas de obras de escritores renomados como Emile Zola, Eça de Queirós, Sartre, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Guerra Junqueiro por considerar seu conteúdo impróprio para a leitura. Já fora do cargo, foi homenageado com um busto no pátio da reitoria, destruído por estudantes durante uma manifestação em 1968,

» Em julho de 1968, durante a após exibição da peça Roda Viva, de Chico Buarque, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) – com seus integrantes armados de pedaços de pau e soco inglês – invadiu o então Teatro Galpão, destruiu o cenário e agrediu os atores. A atriz Marília Pêra foi obrigada a deixar o local seminua e passar por um corredor polonês onde foi agredida com socos e pontapés.

» A banda Blitz, no auge do sucesso, em 1982, lançou um, LP com 13 músicas, duas delas censuradas pelo regime militar. Como a proibição da veiculação dessas músicas aconteceu depois que as cópias dos discos já tinham sido prensadas, a gravadora decidiu então riscar as faixas. “Ela quer morar comigo na lua” foi censurada em função de um único verso (Ô ela diz que eu ando bundando) e “Cruel cruel esquizofrênico blues” vetada por causa do trocadilho com a palavra peru (Só porque ela pegou no peru do seu marido).

» Em setembro deste ano, a exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira” fechou as portas para a visitação um mês antes do prazo previsto – após protestos do Movimento Brasil Livre (MBL) contra a mostra, que tinha como objetivo valorizar a diversidade sexual através de temáticas LGBT.

Resistência com apelo à liberdade

O secretário adjunto de Cultura de Minas Gerais, João Miguel, também manifesta preocupação com os ataques às exposições. O Palácio das Artes, administrado pela secretaria, resistiu às pressões e manteve a exposição de Moraleida.

“Movimentos que se organizam contra a exibição de obras de arte demonstram um total desconhecimento não somente da história, como também do poder transformador da cultura. Tensão e conflito sempre foram ingredientes presentes no fazer artístico, portanto a arte sempre causou incômodo e questionamento, e isso é algo benéfico”, afirma o secretário-adjunto.

Para João Miguel, qualquer tipo de censura deve ser totalmente combatido, mas é preciso discutir com transparência e seriedade a classificação indicativa para exposições, o que poderia evitar transtornos. A do Moraleida, por exemplo, não é recomendada para menores de 18 anos. “Isso, no entanto, não esvazia o necessário debate sobre o claro estabelecimento de classificação etária para mostras e exposições artísticas. Neste momento em que pequenos grupos questionam exposições em algumas cidades do Brasil, não podemos nos calar. Minas tem sido exemplo na manutenção da liberdade de expressão”. Para ele, a exposição de Moraleida acabou se configurando como um espaço de resistência.

A Ocupação Transarte, que acontece atualmente na Funarte, merece igualmente nosso olhar atento. “Da mesma forma devemos comunhão às manifestações das culturas urbanas que, diariamente sofrem atrocidades de toda sorte. Não podemos aceitar que grupos incultos queiram inviabilizar esses espaços de exposições de arte, que também funcionam como locais de reflexão sobre tabus, paradigmas e dogmas sociais. Caso contrário, entraremos em um período de absurdo retrocesso.

A cultura de Minas Gerais é viva e jamais aceitará voltar a tempos cinzentos. Resistimos pelo compromisso com aquilo que mais nos identifica como mineiros: a liberdade”, diz João Miguel, um dos organizadores em nome da Secretaria de Cultura de um ato contra a censura marcado para novembro na capital mineira. A intenção é tentar trazer artistas, diretores de museus e produtores culturais para debater formas de combater a censura e o preconceito contra manifestações artísticas.

“Me entristece muito a gente estar vivendo esse tempo de repressão e represália, principalmente contra a cultura e a produção intelectual”, disse o cantor e compositor Flávio Renegado, que defende a cultura como uma forma de resistência e inclusão social. Mas para ele, que veio da periferia, cuja produção cultural sempre foi marginalizada e vítima de preconceitos, essa onda de censura não assusta tanto. “Esses agentes conservadores estão se sentindo à vontade para se mostrar, mas eu até prefiro, pois assim a gente consegue visualizar quem são nossos reais inimigos e como temos que nos contrapor. Mas a cultura é força de combate e embate e vamos continuar na linha de frente resistindo”.

Mas, de acordo com ele, essa resistência não vai ser feita com ódio. “Nós somos do diálogo e do amor. A gente escuta, ouve, debat, mas nunca censura o direito do outro”. Para o jornalista e diretor do Museu de Arte da Pampulha, Victor Louvisi, essa onda vem sendo construída por determinados grupos da sociedade brasileira e agora ganhou corpo. Mas para ele, os museus devem resistir em nome do combate a censura à produção artística.
“Os museus e seus profissionais devem continuar com o seu trabalho e ter coragem para defender a liberdade artística e de expressão. Acho importante estarmos atentos e unidos em prol desses objetivos. Caso contrário, correremos o risco de termos uma sociedade cada vez mais agressiva na qual o diálogo ficará escasso. Precisamos estar dispostos a dialogar e aceitar que a sociedade brasileira é diversificada”, defende.

 

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