Mais que colocar um ponto final na discussão sobre o chamado “foro privilegiado” para autoridades brasileiras, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da ação que trata do assunto poderá dar um novo destino a 90% de processos que hoje tramitam por lá. Para se ter uma ideia, o STF tem atualmente 527 ações penais e inquéritos envolvendo réus com prerrogativa de foro – sendo 236 parlamentares. E o número no Supremo pode ser ainda maior, já que os processos sob segredo de Justiça não aparecem nas estatísticas disponibilizadas pelo órgão.
O que está em jogo no STF é se a prerrogativa de foro, prevista na Constituição Federal e nas estaduais, deve ser aplicada apenas aos crimes cometidos no exercício do mandato e se tiver alguma relação com o cargo ocupado. Na atualidade, a regra é aplicada indistintamente para quem tem mandato ou ocupa alguns cargos públicos, o que acaba atrasando os processos em razão do vaievém entre os tribunais. Segundo levantamento realizado pelo Senado, em todo o país, 54.990 autoridades têm foro especial em processos judiciais da esfera criminal.
Deste total, mais de 800 autoridades são da competência do STF: presidente e vice, 513 deputados federais, 81 senadores, ministros, 3 comandantes militares, 90 ministros de tribunais superiores e 9 do Tribunal de Contas da União (TCU), além de 138 chefes de missão diplomática. E a conta não para por aí. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), os tribunais regionais federais (TRFs) e o Tribunal de Justiça (TJ) nos estados também são a instância para julgamento de governadores, vices, secretários, prefeitos, magistrados, membros do Ministério Público, deputados estaduais e vereadores.
O julgamento que pode mudar a aplicação do que diz a Constituição Federal está marcado para o próximo dia 23, quando será apresentado o voto-vista do ministro Alexandre de Moraes. Em 1º de junho, ele pediu mais tempo para analisar o processo envolvendo o assunto – ajuizado pela Procuradoria-Geral da República –, depois que quatro ministros já haviam votado: o relator Luis Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Todos se posicionaram pela limitação no direito ao foro privilegiado. Faltam votar os ministros Edson Fachin, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. São necessários seis votos.
Montanha-russa Autor da ação, o então procurador-geral da República Rodrigo Janot defendeu que o foro só deve ser aplicado aos casos em que o fato investigado tenha relação com o cargo e tenha ocorrido durante o mandato. Durante o julgamento, Janot alegou que a regra leva a uma “montanha-russa processual”, já que mudanças de cargos fazem com que os processos aos quais respondem na Justiça sejam transferidos entre os tribunais. Em seu voto, o relator Luis Roberto Barroso acatou os argumentos e defendeu que a prerrogativa de foro tem sido usada como instrumento para garantir que os políticos sejam julgados no STF. O ministro ainda afirmou que as investigações e ações criminais não são a “vocação natural” do Supremo e atrapalham o exercício de suas funções essenciais.
No fim do primeiro semestre, o Senado aprovou o fim do foro por prerrogativa de função por 69 votos a zero. A PEC mantém a regra de foro no Supremo apenas para os presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado. Mas mantém prerrogativa para deputados e senadores: não podem ser presos antes da condenação transitada em julgado, salvo em crime inafiançável ou flagrante delito. Em relação ao presidente da República, para ser aceita uma denúncia é preciso que dois terços dos deputados autorizem a abertura do processo.
Entenda o caso
A discussão sobre o foro privilegiado chegou ao STF por meio de uma ação ajuizada pela Procuradoria-Geral da República contra o ex-deputado federal e hoje prefeito de Cabo Frio Marquinho Mendes (PMDB). O peemedebista foi empossado na Câmara como suplente de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), mas renunciou ao mandato para assumir a prefeitura da cidade fluminense em janeiro deste ano. Acusado de compra de votos na primeira campanha à prefeitura, em 2008, desde então o político trocou de cargo algumas vezes – alternando prefeito e deputado – provocando a mudança de foro para julgamento. Diante dessa estratégia, a PGR defende que o direito ao foro deve ser limitado a acusações por crimes cometidos no cargo e que tenham relação com o exercício da função.