O ministro da Justiça, Torquato Jardim, compara a intervenção federal no Rio de Janeiro a uma guerra assimétrica, em que o inimigo, no caso os traficantes, têm várias frentes de ação, dificultando o trabalho das forças militares e policiais. “Essa guerra moderna não é mais aquela de 1945, com inimigos uniformizados, terreno definido e batalhão organizado”, disse ele, que foi protagonista de duas decisões do governo em nomear um general para comandar a segurança do estado fluminense e criar um ministério para coordenar as ações de combate à violência nas cidades brasileiras. Em entrevista na tarde de ontem, na sede do Correio Braziliense, Torquato disse que, no Rio, qualquer um pode ser o inimigo. “Não sabe que arma virá, não sabe quantos virão. O seu inimigo não tem linha de comando longamente estabelecida. Não tem um centro nevrálgico para atacar. Pior, no caso do narcotráfico e do crime organizado, está também nas fronteiras com outros países.”
Os próprios militares estão apreensivos sobre a intervenção, a ponto de alguns até publicamente questionarem a medida.
Não conheço essas fontes.
Vai morrer gente.
Em algum momento, lamentavelmente, vai.
Os militares estão fazendo pressão para ter mais salvaguardas como aconteceu, por exemplo, no caso do Haiti, com aval da ONU.
Já mudou a lei do Brasil, sobre o militar ser julgado pela Justiça Militar.
Mas eles acham que é pouco. Querem mais proteção, inclusive jurídica.
Esse é um problema seríssimo, quando em qualquer país você engaja Forças Armadas e reação civil interna. Não é uma guerra civil. Essa pergunta não tem resposta. Se está lá com PM, Polícia Civil e Forças Armadas, se passar um guri de 15 anos, você vê a foto dele, já matou quatro, entrou e saiu do centro de recuperação, uma dúzia de vezes, e está ali com um fuzil exclusivo das Forças Armadas, você vai fazer o quê? Prende. O guri vai lá e sai, na quarta ou quinta vez que você vê o fulano, vai fazer o quê? Você tem reação humana aí que deve ser muito bem trabalhada psicologicamente, emocionalmente, no PM ou no soldado. Você está no posto, mirando à distância, na alça da mira aquele guri que já saiu quatro, cinco vezes, está com a arma e já matou uns quatro. E agora? Tem que esperar ele pegar a arma para prender em flagrante ou elimino à distância? Ele é um cidadão sob suspeita porque não está praticando o ato naquele momento ou é um combatente inimigo? Os EUA enfrentaram esse tema como um inimigo combatente. É a noção de guerra assimétrica, estamos vivendo na guerra simétrica.
Do que se trata?
A guerra moderna não é a que lutamos em 1945, que você tinha terreno inimigo, inimigo com uniforme, estruturado, com batalhão, pelotão, companhia etc. Você não sabe quem é o inimigo, a luta se dá em qualquer ponto do território nacional.
Uma das críticas de militares é que foi uma decisão de surpresa.
Nem açodado, nem apressado, nem surpreso. Foi pensado durante semanas, conversado, apenas em um círculo íntimo do presidente da República, do qual sempre participou o ministro da defesa, portanto, as Forças Armadas estavam cientes do que se passava. Não é uma decisão que você anuncie em praça pública. Conforme se consolidava as ideias, outros foram participando, passamos ao quadro político, ao jurídico, ao econômico e ao financeiro. Aí vieram os ministros Henrique Meirelles e Dyogo Oliveia, conversamos sobre a produção de mercado porque a intervenção suspende a votação e o processo legislativo. Então, era preciso saber da econômica e financeira quais as consequências para o mercado, para investidores nacionais e estrangeiros. Depois, pesquisas de opinião, qual é a percepção se não passa a Previdência agora. Tudo isso foi conversado. Até que, concebida toda essa história, os comandantes militares vieram para tratar diretamente com o presidente. Até então havia tratado por intermédio do Ministro da Defesa. Por que os comandantes militares foram chamados? Porque, pela Constituição, eles são também membros do Conselho de Defesa Nacional. Se eles iam ter posição formal em face da comissão, diante do presidente do conselho, eles também foram chamados ao diálogo e trouxeram mais informação, perspectiva. Isso significa engajamento. Houve consulta formal, naquele ambiente restrito, se aceitariam bem um general como interventor ou se preferiam um civil. Tudo isso foi estudado. Alguns de nós estudamos nomes de militares, outros de nós estudamos nomes de civis. Pelo menos uma dúzia de personalidades tiveram seus nomes imaginados e conversados entre nós, como eventuais interventores. No último passo é que os dois presidentes da Câmara e do Senado foram chamados.
Os comandantes militares foram chamados nessas semanas anteriores?
Foram consultados.
Qual era o núcleo inicial dessa conversa?
O presidente, com o ministro Padilha, ministro Moreira Franco, ministro da Defesa. Por exemplo, sobre o Ministério da Segurança Pública, o presidente e eu, conversamos, pela primeira vez, em novembro. Desde então estamos cozinhando. Desde aquelas coisas que andei falando em outubro (Torquato disse que comandantes de batalhões da PM são sócios do crime organizado), conversamos sobre a conveniência do Ministério da Segurança Pública. Já naquela época, alguns parlamentares falavam isso. É aquela velha frase do presidente Kennedy, quando uma boa ideia dá certo, tem quinhentas mães. Quando não dá certo, é órfã de pai e mãe.
Mas ainda há pouca informação sobre a intervenção…
Não vamos entregar o ouro para o bandido. O que é público? Não vai faltar dinheiro. A folha de pagamento continua com o estado e já foi feito acerto financeiro com o estado. Por exemplo, a intervenção não podia sair antes porque tinha que acabar de fechar o acordo de recuperação financeira do Rio com a União. Não podíamos engajar a ação orçamentária do estado. O estado tem orçamento. Veja que as coisas foram acontecendo. A área econômica foi avisada depois para também não atrapalhar o time dela, não ter vazamento. Foi sendo construído devagar. A inteligência, sei que o papo é velho, mas estamos falando desde julho do ano passado, não dá para revelar tudo que sabemos.
O pai da criança foi o senhor?
Não. O presidente e eu conversamos sobre isso desde novembro.
Como vai ficar essa divisão dos ministérios da Justiça e da Segurança?
É um corte cirúrgico. Historicamente, o Ministério da Justiça é um ministério de convivência política com o Congresso e jurídica, com o Judiciário. É o elo entre o Executivo e o Legislativo e o Executivo e o Judiciário. Foi assim quando tomei posse. Visitei os tribunais, o Ministério Público, para recompor esse espaço tradicional de pensar as leis, as reformas, o espaço de fazer a assistência social, como a Secretaria Nacional Antidrogas, o espaço do índio, a Funai. Essa é a visão clássica que foi desaparecendo aos poucos por outras circunstâncias. O Ministério da Justiça tinha, por tradição, deveres, no direito brasileiro, conjunto do sistema e repensar códigos e legislação. Mas aí veio a ênfase na área de segurança pública. De uma certa maneira, a Polícia Federal, o governo federal sempre estiveram lá, mas não tinha a preeminência de passar a ter, nas últimas duas ou três décadas, um avanço da sofisticação da criminalidade. Então, veio esse lado forte da segurança pública, que absorve, barbaramente, o tempo do ministro de Estado. Acaba que as outras tarefas ficam com menos horas de dedicação. Você passa a ter 15 secretarias que aportam ao ministro de Estado. Fica muita coisa. É minha brincadeira: vou da tanga à toga todos os dias, da Funai à magistratura, passando pela Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Arquivo Nacional. O corte é este: você teria uma concentração de esforços com as verbas já disponíveis, uma concentração de trabalho de gerência — a motivação é política, mas a grande mudança é gerencial — você teria PF, Polícia Rodoviária Federal, Departamento Penitenciário, Secretária Nacional de Segurança Pública, essencialmente os quatro, formando esse novo ministério.
Se o plano do Rio der certo, outros estados não vão pedir ajuda também e assim jogarem a responsabilidade para o governo federal?
Esse é o risco. Esse é um desafio conceitual fantástico que terá o futuro ministro: não haver transferência de responsabilidade. Alguns governadores aplicaram mal o dinheiro, claramente. É uma questão de gerencial, e nessa questão gerencial de falta de verba, por outras razões sociológicas e psiquiatras houve uma quebra da hierarquia da PM e da Civil.
Há uma preocupação de que os traficantes do Rio fujam outros estados…
Temos de ver se vai ser marola ou tsunami. Alguma coisa vai acontecer, temos que ser realistas. Alguma coisa vai acontecer, São Paulo, Minas, Espirito Santo, em consequência dessa ação no Rio. Quanto mais eficaz a ação no Rio de Janeiro, a marola vai crescer. O nosso trabalho é não deixar virar tempestade, jamais um tsunami.
Há risco de captura de militares pelo tráfico?
Pode ser. Esse é um problema sério. Você tem um militar engajado que fica até oito anos de serviço. Ele saindo, o armeiro como eles chamam, especialista em montar e desmontar rifles, fazer manutenção de armas, sai sargento ganhando R$ 3.500 por mês, vai ganhar R$ 22 mil no narcotráfico e, às vezes, ele nem é de um grupo só. Ele se aluga, vai de grupo em grupo, de morro em morro
O interventor vai ter condições de avançar sobre a banda podre da polícia?
A expectativa é essa.
É para isso que houve a intervenção?
O motivo da intervenção é a quebra da ordem pública geral. As causas da quebra da ordem pública é que o interventor terá que atacar..