Jornal Estado de Minas

Descrença no sistema democrático expõe país ao risco do autoritarismo


A agenda de combate à corrupção, capturada por candidatos de extrema-direita com plataformas autoritárias e antidemocráticas expressa risco real de consolidação de um Estado autoritário no Brasil. “Um dos impactos do combate à corrupção que houve no país foi a descrença da população no sistema democrático. Perdemos 20 pontos percentuais de confiança na democracia de um ano ao outro. Hoje, o Brasil é o pior país de confiança no sistema democrático em toda a América Latina. O risco de resposta autoritária capturando essa agenda é real”, avalia Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil.


Segundo ele, a pauta anticorrupção está espremida entre uma esquerda refratária a este debate, porque acusa a seletividade do sistema; e, por outro, uma direita com “indignação seletiva”, que associa o combate à corrupção a uma agenda de valores retrógrada e de intolerância. “O efeito no debate público é uma polarização exacerbada. Agora, dependerá de nós, ao confrontar a corrupção, preservar valores democráticos”, sustenta Brandão, que defende um conjunto de medidas sistêmicas, a serem examinadas pelo Congresso Nacional, não mais nesta, mas na próxima legislatura.

Estão abertas à consulta, na internet, 84 medidas elaboradas em parceria entre a Transparência Internacional e a Fundação Getulio Vargas, depois de uma pesquisa realizada com 300 entidades. A proposta da instituição é de que venham a substituir o pacote das 10 medidas contra a corrupção elaborado pela força-tarefa e, atualmente, parado no Congresso Nacional, pelo viés excessivamente punitivo, que ao mesmo tempo neglicencia a educação e a prevenção.
Entre as medidas sob consulta está também uma proposta de projeto contra o abuso de autoridade.

Neste momento, a Transparência Internacional elabora uma plataforma contendo informações sobre novos candidatos e candidatos à reeleição que irá ranqueá-los com critérios que, além da ficha limpa, também vão considerar comportamento eleitoral para o financiamento das campanhas e nas redes sociais – com perda de posições para uso de robôs e disseminação de notícias falsas. Adesão ao pacote anticorrupção e medidas para regular excessos dos órgãos de controle e Judiciário, apoio aos princípios democráticos e direitos fundamentais do ser humano, além da adesão ao manifesto de campanha on-line “não vale tudo”, são também critérios que vão nortear o ranqueamento dos candidatos.

 

Os últimos indicadores divulgados pela Transparência Internacional dão conta de aumento na percepção da corrupção no Brasil: desde 2012, foi registrado em 2017 o pior resultado do país neste ranking. Enquanto entre 2012 e 2014 a pontuação do Brasil oscilou, na escala de 0 a 100, entre 42 e 43; em 2015, o Brasil marcou 38 pontos; em 2016, registrou 40 pontos e, em 2017, 37 pontos. O que em sua avaliação explica essa perda de confiança no combate à corrupção?

É importante entender que esse é um índice de percepção da corrupção, um fenômeno oculto. Então, estamos medindo a percepção de especialistas e homens de negócio em relação basicamente àquela corrupção que deu errado. A corrupção que “dá certo” não aparece. Esse índice da percepção da corrupção ranqueia 180 países, numa escala de 0 a 100, em que 0 é um país percebido enquanto muito corrupto e 100 um país percebido como “livre da corrupção”.

Esse é um indicador construído a partir de 13 pesquisas coletadas com dados primários. Em 2016, o Brasil havia registrado 40 pontos e parecia ser o início de estabilização dessa percepção negativa, que em 2015 registrara 38 pontos. Pensávamos que seria o início de um momento virtuoso, que haveria uma inflexão na curva, pois é normal nos países que começam a enfrentar a corrupção uma piora inicial da percepção da corrupção, que começa a aparecer mais, como aconteceu no Brasil com a Lava-Jato.

E porque não houve essa inflexão?

Nos países que persistem no combate à corrupção, essa percepção começa a se reverter. É o que esperávamos começasse a ocorrer a partir de 2017. Mas esse ano foi de enorme decepção. Em 2017, o Brasil marcou 37 pontos e foi ranqueado em 96º lugar na escala de integridade, liderada, na outra ponta por Nova Zelândia, Dinamarca e Finlândia, Noruega e Suíça, países que registram mais de 85 pontos. A percepção da corrupção no Brasil em 2017 se iguala, assim, nessa escala, àquela verificada na Colômbia, Indonésia, Panamá, Peru, Tailândia e Zâmbia. Esse aumento de percepção da corrupção no país aconteceu porque os fatores estruturais nacionais seguem inabalados.
Não houve em 2017 qualquer esboço de resposta sistêmica ao problema.

A transformação do anunciado combate à corrupção por integrantes do Judiciário e órgãos de controle em espetáculo midiático tem exposto de forma precipitada reputações. O caso do reitor de Santa Catarina, que se suicidou, é uma expressão disso. Esse atropelo às garantias da lei empurrou, mundo afora, vários países para a consolidação de Estados autoritários. Corremos esse risco no Brasil?

Claro que corremos. Um dos impactos que houve no Brasil do combate à corrupção foi a descrença da população no sistema democrático. Perdemos 20 pontos percentuais de confiança na democracia de um ano ao outro. Hoje, o Brasil é o pior país de confiança no sistema democrático de toda a América Latina. O risco de resposta autoritária capturando essa agenda é real. Você tem por um lado uma esquerda que está completamente refratária a essa agenda, com um discurso oportunista de vitimização, em grande medida com razão em diversas aspectos, mas também associando a luta contra a corrupção à perseguição a um governo popular. E por outro lado a direita com uma indignação seletiva, associando o combate à corrupção a uma agenda autoritária, de intolerância, retrógrada, que captura essa temática da corrupção.
Então, está espremido o campo para se tratar do problema de uma maneira desapaixonada, abordando questões sistêmicas e de legitimidade. O efeito no debate público é uma polarização exacerbada. Agora, dependerá de nós, ao confrontar a corrupção, preservar valores democráticos.

Como o sr. avalia a atuação do Poder Judiciário e órgãos de controle na Operação Lava-Jato?

Foram quatro anos da operação mais complexa que este país enfrentou, envolvendo o topo da autoridade política e do poder econômico. É inevitável que um processo como este tenha um cunho político inerente. Em certos momentos houve excessos. Mas não acredito que os excessos resumam o que significa essa operação. A seletividade, que é a grande crítica da esquerda, deve ser levada em consideração. Há uma seletividade do sistema. Por que o sistema funciona de forma seletiva para proteger uma classe política de um setor e o outro é perseguido por questões de posição política? A Lava-Jato não chegou no sistema financeiro bancário nem no sistema Judiciário.
Por que será? Os mecanismos do sistema protegem esses grupos. Porque na delação da Odebrecht não saiu uma informação sobre propina do Judiciário. E por que o diretor jurídico da Odebrecht se mantém? Por que ainda está lá e qual é a relação dele com o Poder Judiciário? Estaria se protegendo e barrando que a operação avance nesse sentido? Então, é claro que o sistema tem mecanismos de proteção para certos grupos e certos setores.

E há como quebrar essa proteção?

O combate à corrupção mexe em estrutura, é disruptivo e ninguém garante que trará um resultado positivo. Quando começa a mexer em pactos oligárquicos estáveis, que estão presentes há 500 anos, isso gera disrupção. E há guerra de comunicação. Dos dois lados há formação mentirosa. Esse protagonismo do Ministério Público, isso é parte dessa guerra de comunicação de dois lados. A população, acho, precisa ser em parte mobilizada. Mas com limites. Eles são agentes da lei. Então com limites para essa comunicação, porque acho também que não se pode calá-los. Agora, os juízes não podem fazer parte disso.

Quem vai controlar o Poder Judiciário?

Estamos com um pacote das medidas contra a corrupção do mundo. São 84 projetos elaborados em parceria com a Fundação Getulio Vargas, depois de uma pesquisa realizada com 300 entidades, que, neste momento, estão sob consulta popular na internet. Entre eles está a proposta de um projeto de abuso de autoridade. Há, no conjunto, propostas de projeto de lei, de emenda constitucional e resoluções administrativas – entre elas o fim do foro privilegiado, a recuperação de ativos desviados e processos educacionais – destinados a substituir o pacote das 10 medidas contra a corrupção, projeto de lei elaborado pela força-tarefa da Lava-Jato, que tinha um viés excessivamente punitivo e negligenciava a educação e a prevenção. A ideia é trazer o debate sobre a corrupção para soluções sistêmicas e para as reformas que o país precisa.

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