Quando os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se reunirem no plenário nesta quarta-feira, terão nas mãos a prerrogativa de decidir como serão investigados, processados e julgados 594 políticos brasileiros: os 513 deputados federais e 81 senadores. Eles retomam na volta do feriado do Dia do Trabalho a discussão sobre o chamado foro privilegiado – oficialmente a prerrogativa de foro por função, prevista no artigo 53 da Constituição Federal. Pela regra atual, os parlamentares só podem ser julgados nos tribunais superiores. Mas falta pouco para a regra cair: dos 11 ministros do STF, oito já votaram pela restrição da regra, ou seja, eles só serão julgados no órgão por crimes ocorridos durante e em função do mandato.
Em meio à discussão jurídica, uma pergunta fica no ar. Ser julgado em um tribunal de terceira instância é mesmo um privilégio? Há duas interpretações possíveis. Há quem alegue a importância da paridade de poderes, além de o mecanismo garantir a independência do Judiciário e evitar pressão nos julgamentos, seja dos acusados sobre os juízes, seja do magistrado sobre o réu. Mas há também pontos negativos. “Uma desvantagem para quem está sendo processado no STF é que o foro é único. Se for condenado no Supremo, não há mais recurso. Enquanto se o processo começar na primeira instância, você tem quatro graus de recursos, podendo ainda ser absolvido”, diz o desembargador da Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas, Doorgal Andrada.
O magistrado vai além. Para ele, ao contrário do que muita gente diz, o fim do foro por prerrogativa poderá até mesmo favorecer a impunidade. “Poderão correr casos na Justiça em que o fim do foro privilegiado irá causar uma maior impunidade que a atual, uma vez que a condenação final demorará muito mais, pois terá que percorrer quatro instâncias, quatro julgamentos em tribunais diferentes, e com direito a dezenas de recursos. A mudança da lei em muitos casos será um tiro no pé, a beneficiar o acusado”, argumentou.
CABO FRIO
A discussão sobre o foro privilegiado chegou ao STF em uma ação ajuizada pela Procuradoria-Geral da República contra o prefeito de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, Marcos da Rocha Mendes (MDB), cassado na semana passada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Empossado como suplente do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (MDB-RJ) – também cassado pelos colegas –, Mendes renunciou ao mandato parlamentar para assumir a prefeitura em 1º de janeiro do ano passado. Acusado de compra de votos na primeira campanha à prefeitura, em 2008, desde então o político trocou de cargo algumas vezes – alternando prefeito e deputado – provocando a mudança de foro para julgamento.
O julgamento dessa ação começou há quase um ano – em 31 de maio de 2017 – e foi interrompido em duas ocasiões, por pedido de vista dos ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, o próximo a votar. O relator, ministro Luís Roberto Barroso, votou a favor da restrição ao foro e foi acompanhado pelos colegas Marco Aurélio, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Luiz Fux, Celso de Mello e Alexandre de Moraes. Faltam os votos de Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.
Além de defender que o foro por prerrogativa a deputados e senadores deve ser aplicado somente aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas, Barroso argumentou que o processo deverá continuar na Suprema Corte se o parlamentar renunciar ou deixar o mandato para assumir um cargo no Executivo após ser intimado para apresentar alegações finais.
Embora a questão já tenha maioria no STF, a decisão só terá validade depois do voto de todos os ministros e a decisão for publicada no Diário do Judiciário.
Regras no Brasil são as mais ‘generosas’
Ao proferir seu voto durante o julgamento de uma ação penal em 1999, o então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Sepúlveda Pertence foi categórico: “Poucos ordenamentos (do mundo) são tão pródigos quanto a vigente Constituição brasileira na outorga da prerrogativa de foro”. Foi essa também a conclusão de estudo realizado pela Câmara dos Deputados em 2016, quando foram analisadas as regras do foro especial em 16 países das Américas do Norte e Latina e da Europa.
No relatório de 24 páginas, disponível no site da Câmara, o consultor legislativo Newton Tavares Filho ressalta que a lógica para a atribuição de um foro especial é semelhante em todos os países, e tem por base o reconhecimento da relevância de uma função exercida por uma autoridade pública e a atribuição a um órgão hierarquicamente superior para processá-lo e julgá-lo. “Nenhum país estudado, entretanto, previu tantas hipóteses de foro privilegiado como a Constituição brasileira de 1988”, escreveu o consultor.
Nos Estados Unidos, por exemplo, as ações que envolvam embaixadores, outros ministros e cônsules, e aquelas em que se achar envolvido um Estado, têm foro originário perante a Suprema Corte. O impeachment do presidente e vice-presidente da República, assim como de qualquer agente público civil dos EUA, é julgado pelo Senado, mediante admissão da acusação pela Câmara dos Representantes. Mas a legislação não impede que integrantes do Executivo e parlamentares sejam julgados na primeira instância da Justiça.
Ao primeiro-ministro da Alemanha também é dado tratamento comum, enquanto o presidente deve ser julgado pela Corte Constitucional por crime de responsabilidade, mas mediante autorização das Câmaras do Parlamento. Na Inglaterra, o primeiro-ministro também não tem qualquer benefício judicial, podendo ser julgado pela primeira instância. Na Espanha, a Constituição de 1978 delega à Câmara Penal do Tribunal Supremo a instrução e o julgamento das causas contra deputados e senadores e a responsabilidade criminal do presidente e membros do governo.
A Constituição portuguesa prevê que o presidente da República responda perante o Supremo Tribunal de Justiça por crimes praticados no exercício das suas funções, entretanto, por crimes estranhos ao mandato deve ser respondido nos tribunais comuns. Na França, o presidente da República não está sujeito a ação, ato de instrução ou ato persecutório perante nenhuma jurisdição ou autoridade administrativa francesa.
Pode-se dizer que a legislação colombiana é a que mais se aproxima da brasileira no comparativo entre os países pesquisados. No país americano, a Corte Suprema de Justiça é o órgão competente para conhecer e julgar os delitos dos integrantes do Legislativo. É também a única autoridade competente para determinar a detenção dos congressistas, mesmo em caso de flagrante delito. O presidente da República não poderá ser processado ou julgado, a não ser que haja acusação da Câmara de Representantes e autorização pelo Senado.
O estudo mostra ainda que, embora não seja propriamente um foro privilegiado, na Suécia, a Constituição determina imunidade absoluta de foro para o rei e para o regente que eventualmente ocupe o trono. O mesmo ocorre na Constituição norueguesa de 1814, onde essas pessoas não podem ser processadas e julgadas pelo Judiciário.
EM NÚMEROS
54.990
Autoridades têm prerrogativa de foro no Brasil
527
Ações em tramitação em que o réu tem prerrogativa de foro
1.377 dias
Tempo de tramitação de uma ação penal em 2016
384
Decisões em ações penais entre 2012 e 2016, incluindo sentença e declínio de competência
60%
Índice de ações que retornaram para instâncias inferiores em razão da perda de foro dos réus
Fonte: STF e Senado