A negociação entre o presidente da República e lideranças políticas dos partidos para conseguir governar é apontada pelo sociólogo mineiro Sérgio Abranches há três décadas. Em artigo em que cunhou o termo “presidencialismo de coalizão”, ele avalia o modelo político que existe no Brasil desde 1945, em que o chefe do Executivo acaba se tornando refém de oligarquias congressuais e estaduais para conseguir administrar o país. Apenas durante a ditadura militar (1964-1985) o modelo ficou de stand by, porque os generais não se preocupavam em negociar ou dialogar com os setores diversos da população. Trinta anos depois de citar o termo que se tornaria muito conhecido no cenário político, Abranches atualiza seu estudo sobre o modelo político em Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. Na obra recém-lançada entram análises sobre os governos pós-1988. Para entender a evolução do presidencialismo de coalizão, o autor faz balanço sobre o impeachment de Fernando Collor e de Dilma Rousseff e as crises enfrentadas por Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Temas quentes da atual disputa eleitoral, como os embates polarizados entre ideologias extremas e a judicialização da política, também são alvo da reflexão sobre os desafios para a democracia brasileira.
Há 30 anos, o senhor publicou artigo em que falou sobre o presidencialismo de coalizão. De 1988 para cá, o que mudou neste modelo político do Brasil?
Nestes últimos 30 anos aconteceram várias coisas na política brasileira. Uma delas que me motivou a fazer este novo livro é que o modelo de presidencialismo de coalizão tem sido mal compreendido e o desempenho deste modelo é objeto de confusão. Quando foi adotado pela Constituinte de 1988, o presidencialismo de coalizão era uma espécie de adaptação renovada e reforçada do presidencialismo de coalizão que havíamos instituído na Constituição de 1946, que durou até 1964, com o golpe militar. O modelo original – que vou chamar de presidencialismo de coalizão 1.0 – não sobreviveu às crises que ele próprio gerou e sucumbiu a um golpe militar. Já o presidencialismo versão 2.0, a versão melhorada que temos desde 1988, mostrou muita resiliência. Passou por dois impeachments. Ou seja, as crises que ele criou, sejam políticas ou econômicas, foram superadas e se manteve o quadro democrático. A resiliência institucional do modelo se provou muito maior do que no período anterior, com instituições mais eficazes e robustas.
Então, com a nova Constituição de 1988, em comparação com a de 1946, o modelo político do presidencialismo de coalizão evoluiu?
Com certeza. O modelo passou por várias alterações. Mas a ideia de um regime presidencialista multipartidário em que o presidente, por conta das eleições proporcionais e muito competitivas, não consegue fazer a maioria no Congresso com seu próprio partido e precisa fazer coalizões para governar, permaneceu o mesmo. Essas coalizões significam entrega de ministérios e de poder decisório. Mas, no modelo de 1988, o presidente é mais forte, com poder de veto, e o poder da Federação é mais concentrado, ainda assim o Congresso ficou mais forte. Ao mesmo tempo, fortalecemos as instituições de fiscalização e controle, que eram muito fracas no período anterior, como o Ministério Público. Temos mais independência do Judiciário, o Supremo no novo modelo que vivemos agora passou a ter influência.
A judicialização da política, criticada por analistas, é reflexo desse modelo político. Como o senhor avalia a atuação do Judiciário nos dias de hoje?
O processo de judicialização que não ocorria no passado ocorre neste momento. Muita gente critica, mas por falta do Supremo Tribunal Federal em nossa República os militares passaram a interferir várias vezes na política para dirimir conflitos que surgem da dinâmica política. Essa questão da judicialização foi crucial para manter o equilíbrio democrático no período de caos, tanto nos processos de impeachment como nas disputas sobre temas do Legislativo. Houve exageros e excessos, primeiro porque quando se tem interferência sistemática do Judiciário no processo político, acaba politizando o próprio Judiciário. Hoje temos um Supremo muito dividido, divisões explícitas por interpretações mais políticas do que jurídicas. Isso é muito ruim. O outro fator que aumenta a judicialização é que a Constituição acabou incorporando tantos temas que dizem respeito mais à legislação ordinária do que à legislação constitucional. O Supremo acabou sendo provocado para questões da política ordinária, que deveriam chegar no máximo ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Muitas discussões não deveriam sequer ter chegado ao Supremo.
O principal problema são as barganhas entre o presidente e sua base de apoio?
Se por um lado o presidencialismo de coalizão se mostrou robusto, com o Judiciário independente para intermediar conflitos, por outro lado se percebe ao longo do tempo a deterioração na qualidade das políticas públicas, seja na educação, segurança ou saúde, onde se acumulam problemas. Isso está associado ao fato de o orçamento ser administrado discricionariamente pelo presidente da República e transforma isso em processo de barganha e negociações com o Congresso. A alocação dos recursos passa a ser feita na base da pressão, as verbas não chegam de forma igualitária nos locais que devem chegar ou para as áreas mais necessitadas. Outro problema é na formação da coalizão, a maneira como o presidente negocia esses apoios. O excesso de centralização da Federação faz com que todos (prefeitos e governadores) se tornem completamente dependentes do dinheiro federal. No processo de intermediar apenas os recursos não se discute a qualidade das políticas, as escolhas e prioridades do país. Isso faz com que as coalizões se tornem clientelistas, casuísticas e oportunistas. Não geram políticas públicas de boa qualidade.
Esse problema parece já ser conhecido e motivo de insatisfação da população que questiona a troca de apoios entre políticos de forma oportunista. Como mudar esse modelo?
Esse processo está chegando ao seu ápice, com esse momento atual muito polarizado. Nos próximos anos essa discussão sobre o modelo político vai produzir avanço progressivo de consenso de que é necessário fazer revisão nos fundamentos desse modelo, para que ele se torne mais eficiente. Talvez não nesta eleição, que será muito polarizada e com visões opostas sobre o que fazer. Agora, será difícil conseguir consensos, mas apenas criar mais impasses. Uma revisão constitucional não deve ser feita em momentos de polarização extremada como agora, mas em momentos de agregação em que grupos buscam elementos que unifiquem os grupos. Enquanto estamos passamos por um descontentamento plural com o modelo político brasileiro, acho que não deve ser feita nova Constituinte. Não temos ainda nada em comum para conseguir bom resultado, que fortaleça nossa democracia. A reforma seria enviesada para um dos lados e não conciliaria nenhum grupo. Precisamos destilar nossos descontentamentos e desencantos e formar novas lideranças.
Mas parte das pessoas e das lideranças políticas cobram pacificação política e a busca por consensos.
Estamos passando por esse período de transição. E as transições são mesmo dolorosas. Temos hoje no país uma transição dolorosa. Não se sabe o que vem pela frente, mas você sabe que o que existe não está funcionando direito. Nossas lideranças envelheceram, algumas se aposentaram, algumas não voltam para a política e outras abandonaram a política. Neste momento não temos lideranças suficientemente maduras, testadas, legitimadas para conduzir esse processo. Essas lideranças vão começar a ser formar a partir de agora, com novo governo, com novas eleições. Vai haver renovação geracional da elite política brasileira. A partir de então seria interessante que se formasse uma busca por consenso.
Essa transição dolorosa vai se arrastar por quanto tempo?
Alguns anos certamente. Pelo menos ao longo do primeiro mandato do próximo presidente, englobando as próximas eleições municipais e as próximas presidenciais e parlamentares, nós vamos continuar nesse processo de transição. Eventualmente dependendo do que se passe até lá. Em quatro anos, com a velocidade vertiginosa que as coisas estão mudando no mundo e no Brasil é muito tempo. Pode ser que cheguemos daqui a quatro anos, em 2022, com uma nova liderança, com novos ares na política e talvez esse processo se dará no próximo mandato. Se não houver essa mudança continuaremos prisioneiros dessa inércia oligárquica que domina a política brasileira, seja no campo da direita, do centro ou da esquerda, hoje só temos oligarquias no Brasil e em vários países. Se ficarmos prisioneiros podemos levar até uma década ou mais para passar por essa renovação.