“Não haverá negociação partidária, recebi apoio da bancada ruralista e evangélica. No varejo, temos 350 parlamentares que querem estar conosco”. O anúncio do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), logo após votar no primeiro turno, sobre a formação de sua equipe ministerial indicou uma mudança na relação entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional a partir de 2019.
Pelo menos no discurso, o próximo presidente garantiu que não trocará ministérios e cargos por apoio de deputados e senadores. Para o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches – autor do célebre artigo que cunhou o conceito de presidencialismo de coalizão (em que o presidente precisa costurar maioria para governar) –, será inevitável que o capitão reformado do Exército busque firmar alianças com legendas e parlamentares, uma vez que seu partido, o PSL, não representa maioria no Parlamento.
No entanto, ele ressalta que o modelo com troca de ministério pelo apoio no Legislativo (o famoso “toma lá da cá” dos últimos governos) não será necessariamente adotado por Bolsonaro, que pode buscar nas bancadas da Bíblia, da bala e do boi (a chamada bancada BBB) uma aliança para aprovar suas propostas de campanha. Abranches participa hoje à noite em BH do projeto Sempre um papo, as 19h30 no auditório da Cemig, e lança o livro Presidencialismo de coalizão.
O presidente eleito Jair Bolsonaro precisará formar uma coalizão para aprovar pautas de seu plano de governo. O que esperar na relação dele com o Congresso Nacional?
A coalizão é inevitável. O partido de Bolsonaro tem 10% da bancada na Câmara dos Deputados e 5% no Senado. Ou seja, apenas com os votos do PSL ele não aprova nada. Mesmo que o partido aumente de tamanho e receba parlamentares de outras legendas não vai conseguir formar uma maioria. Por isso terá que formar uma coalizão. É assim que funciona a regra do jogo brasileiro. Mas formar uma coalizão é diferente de fechar acordos com alianças partidárias com líderes políticos em troca de ministérios. A formação de uma coalizão não é necessariamente nesses moldes. Os últimos governos adotaram esse modelo, o toma lá da cá envolvendo ministérios e cargos, mas esse não é o único modelo possível. Bolsonaro fez uma campanha dizendo que não discutiria negociações de ministérios com partidos e que colocaria pessoas técnicas ou de sua confiança à frente das pastas. As primeiras nomeações seguiram isso, com o Paulo Guedes na economia, o Onyx Lorenzoni na Casa Civil e o general Augusto Heleno na Defesa. A formação de coalizão em troca de ministério não é obrigatória. Na Europa não se faz assim e os governos negociam determinadas pautas temáticas com as bancadas. Angela Merkel (chanceler) na Alemanha, por exemplo, ao tratar de questões da Europa e da reforma previdenciária fez acordos com grupos políticos em busca do cumprimento de determinados temas. É diferente do loteamento como ficou conhecido no Brasil nos últimos governos.
Mas os partidos no Brasil buscam espaço no Poder Executivo e, principalmente, cargos. Como controlar o apetite?
Bolsonaro disse que vai formar uma coalizão e que já recebeu o apoio de mais de 300 deputados que declararam apoio independentemente da distribuição de cargos. Essa relação só vai ser confirmada ou não na prática. Ele disse que vai cumprir os compromissos com as bancadas e vai levar ao congresso exatamente aquilo que prometeu: temas que agradam a bancada da bala, da Bíblia e do boi. Como presidente, ele pode cumprir seu compromisso de enviar as suas propostas de campanha ao Congresso e lá as bancadas vão se articular. O modelo segue sendo o presidencialismo de coalizão, mas com mudanças em relação àquele que analisei em 1988 e que sofreu uma ruptura profunda nesta eleição. Desde 1994, PT e PSDB disputavam a Presidência da República e os outros partidos disputavam espaço na coalizão. Esse modelo agora se desfez. Em 1998 os cinco maiores partidos controlavam 78% da Câmara, hoje os cinco maiores controlam pouco mais de 40%. São bancadas menores e temos um Parlamento mais fragmentado. O resultado são dois efeitos: o poder de barganha diminuiu, o que reduz a capacidade de chantagear o presidente, que tem mais opções e jogos combinatórios para formar sua coalizão. Por outro lado, o presidente tem que negociar com mais visões. Avaliar o posicionamento de cada bancada e as pautas que elas defendem. Por exemplo, a bancada da Bíblia não tem visão tão radical para algumas medidas como a bancada da bala, mas deve haver uma negociação entre esses grupos para atender suas pautas. Vamos ter uma agenda reacionária no que diz respeito aos valores comportamentais e um governo liberal ortodoxo no que diz respeito à economia.
Então é possível que a fragmentação partidária desta eleição ajude o presidente Bolsonaro a formar sua coalizão sem entregar tanto poder às legendas? Ou a crise das legendas tradicionais pode deixar a relação mais conturbada?
Os que vão barganhar cargos chegam com menos poder. Em 2018 tivemos um realinhamento partidário significativo que também vai influenciar muito a construção política do próximo governo federal. Acredito que esse rearranjo vai durar mais alguns ciclos partidários para se consolidar. O PSDB, por exemplo, tem sua principal liderança com João Dória sem nenhuma ligação com a social-democracia, o partido saiu esfacelado nessa eleição. Tudo indica uma crise grave no sistema partidário brasileiro. O modelo que prevaleceu nos últimos 24 anos passou por uma ruptura decisiva este ano. Na próxima eleição, com a cláusula partidária em vigor, vamos continuar vendo essa mudança e o realinhamento ficará mais claro. Os pequenos partidos que não alcançarem os requisitos deverão escolher aqueles maiores que mais representam suas bandeiras. É um processo cheio de riscos. Na Itália houve três realinhamentos partidários e até hoje não chegaram a um sistema funcional por lá. Na França ainda vamos ver o que vai acontecer. A vitória de Macron, com a derrota de republicanos e dos partidos de esquerda também produziu uma mudança e um realinhamento. Essa transformação tem muitos riscos e incertezas. Não se passa de um sistema estável para outro que já começa estável. Agora que o modelo que funcionava nas últimas décadas ruiu ainda não sabemos o que vem pela frente. Mas é preciso entender que esse é um processo de transição.
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