Jornal Estado de Minas

Entrevista

"A esquerda precisa se reinventar", diz Enzo Traverso


A tentativa de se formar uma “frente democrática”, contrária à candidatura do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), foi frustrada, com os dois maiores nomes da esquerda nas eleições de outubro, Fernando Haddad (PT) e Ciro Gomes (PDT), tomando rumos opostos no segundo turno.

O resultado foi que 68% do eleitorado não votou na esquerda, seja por ter se ausentado, por ter votado nulo ou branco ou por fazer parte dos 57,8 milhões de eleitores que escolheram o capitão da reserva.

A bancada do PT ainda é a maior no Congresso Nacional, com 56 parlamentares, mas vê na união dos partidos de centro-esquerda, puxada pelo PDT de Ciro, um sinal de isolamento e terá de se reinventar.

Um dos mais relevantes intelectuais vivos no mundo, o italiano Enzo Traverso, acaba de trazer para o Brasil o livro Melancolia de esquerda, publicado pela Editora Âyiné. Professor de ciência política na Universidade Cornell, em Nova York, Traverso já trabalhou com temas da história política com diversas abordagens e lupas.

Investigou o autoritarismo, o holocausto e a falência das utopias do século 20. Agora, no novo livro, se propõe a explicar “o que é a cultura de esquerda, revelando suas complexidades e intrigas”.

Em entrevista ao Estado de Minas, o intelectual fala sobre o que considera a “melancolia de esquerda”, da crescente onda conservadora no mundo contemporâneo e sobre uma possível falência da democracia liberal.

Em seu último livro, o senhor afirma que há uma “tradição escondida” de melancolia na esquerda. O que isso significa?
Considero que a melancolia de esquerda é uma “tradição escondida” pela simples razão de que, durante toda a história do pensamento de esquerda, nos últimos dois séculos, a dimensão cultural dela foi permanentemente removida ou censurada e, nesse contexto, a melancolia aparece como um sintoma. A esquerda revolucionária foi dominada por comunistas e por impulsos militares de revolução e conquista de poder.
A melancolia é um sinal de fraqueza e a revolução pressupõe coragem.

A extrema-direita ganhou relevância em vários lugares do mundo. Seja na Europa, seja nas Américas ou no Oriente. Como o senhor entende essa ressurgência?
Me parece ser uma tendência global. Recordo que, há alguns anos, o surgimento de uma nova extrema-direita foi considerado um evento pontual. Porém, depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e, agora, com Jair Bolsonaro no Brasil, é evidente que estamos vivenciando uma nova tendência mundial. Preocupa-me muito, porque, agora, podemos enfrentar cenários catastróficos. Penso que assistiremos a uma dramática ressurgência da extrema-direita também na Europa.
Penso em uma possível reeleição de Donald Trump daqui a dois anos. Penso na consolidação de Bolsonaro – coisa que terá tanto um impacto continental, na América Latina, quanto em escala global. Nesse caso, podemos falar em uma transição para uma nova tendência autoritária no mundo, que será a nova tônica das políticas internacionais – que não sei se podemos chamar de fascismo, nos termos que conhecemos. É evidente que isso será um desafio gigantesco para o pensamento de esquerda. Todavia, sou muito cético quanto a simplesmente declarar que há uma onda fascista. É preciso entender a nova face desse “pensamento fascista” no século 21. O que o fascismo significa no século 21? Penso que hoje não podemos pensar em termos dos fascismos clássicos, seja de Hitler ou de Mussolini...



E como seria esse “novo fascismo”?
O “novo fascismo” é muito diferente das experiências que tivemos entre as duas grandes guerras, ou mesmo das que ocorreram na América Latina durante as ditaduras militares que apareceram nas décadas de 1960 e 1970. O fascismo foi uma nova forma de governo e pensamento político na primeira metade do século passado, profundamente marcado por forte intervenção estatal na economia.
Agora, vivemos na época do neoliberalismo e a política econômica de um regime autoritário no século 21 seria muito diferente do fascismo clássico. Bolsonaro é um exemplo disso: ele tem perfil autoritário, mas, ao mesmo tempo, muito liberal no sentido econômico.

Nesse contexto, o senhor entende que há uma ameaça posta para o pensamento de esquerda?
O sucesso eleitoral de movimentos e partidos à direita em todos os lugares não pode ser explicado como uma conjuntura simples, ou como um simples acidente. Não há acidente algum, mas o começo de um novo ciclo. A eleição de Bolsonaro no Brasil, assim como o crescimento de movimentos de extrema-direita na Europa, é também o resultado da falência da esquerda. No Brasil, vê-se o fim de um ciclo político que foi encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores. Penso que, sem mudanças radicais no projeto político da esquerda e, inclusive, em suas características, sem que a esquerda pense em um novo modelo de sociedade, ela será condenada a falhar.



O senhor considera que as utopias do século 20 perderam seu papel no mundo contemporâneo ou que há algum retorno a elas no século 21?
Uma das grandes dificuldades que a esquerda tem enfrentado hoje é a ausência completa de um horizonte utópico, que é uma das diferenças mais marcantes com a esquerda dos últimos dois séculos. O século 19 foi, ainda, muito marcado pela Revolução Francesa, dominado pela ideia de progresso e de socialismo – o que se desaguou no século 20. O século 21 nasceu do colapso dessas utopias e, por isso, vivemos em um mundo onde não há utopia. Isso é um problema gigantesco para a esquerda, que, para mudar a sociedade, precisa mobilizar pessoas, paixões, a imaginação coletiva. Isso, em um mundo sem utopia, é muito difícil.
Não creio que uma possível ressurgência da esquerda venha a partir de um simples retorno aos antigos projetos, às antigas ideias, às antigas formas de organização social. A esquerda precisa inventar um novo projeto de sociedade, um novo projeto de existência. Não é uma tarefa fácil. Acredito, sim, que novas utopias devem surgir e que elas serão criadas por novos movimentos sociais. A ressurgência de uma nova extrema-direita, certamente, estará acompanhada do surgimento de novos movimentos à esquerda. Até agora, porém, esses movimentos foram incapazes de encontrar uma nova proposta política – e a esquerda não pode se afirmar como um novo projeto com receitas antigas de sociedades.

Como deve ser pensado esse novo projeto da esquerda?
A fundação de uma nova esquerda não é algo que pode ser artificialmente pensado. O pensamento crítico, em escala global, é poderoso e vibrante e, atualmente, muito mais sofisticado e difundido do que era há um século, quando a esquerda estava organizando revoluções em diferentes países. O problema não é a falta de um pensamento crítico, mas a distância dos novos pensamentos críticos da esquerda como movimento social orientado para uma mudança política e social.



A esquerda se tornou acadêmica demais?
O próprio conceito do “intelectual” precisa ser repensado. Quando pensamos em intelectuais lembramos de figuras como Jean-Paul Sartre, que foram importantes e participantes da realidade de sua época. Isso não existe mais.
Hoje, os intelectuais são, em grande parte, acadêmicos e um pouco aristocráticos.

A democracia liberal, como a conhecemos, está se desmanchando?
A própria ressurgência de uma extrema-direita é um óbvio espelho de uma crise global da democracia. A democracia está ameaçada de diferentes formas. Por um lado, pelo autoritarismo protofascista desses regimes políticos que surgem. Por outro, a democracia está sendo ameaçada pelo neoliberalismo, que não é necessariamente fascista, mas é um novo modelo de civilização que é incompatível com a ideia de democracia. Ele é uma maneira de destruir a democracia por dentro. Democracia significa uma preocupação pelo comum, uma ideia de sociedade que compartilha lugares, uma comunidade na qual indivíduos agem unidos. Democracia implica interação e diversidade em um lugar-comum. O neoliberalismo é um modelo de sociedade completamente baseado no individualismo, possessivo e competitivo. Nele, é preciso entender a sua própria vida como se ela fosse uma empresa – o que impossibilita que os indivíduos se entendem dentro de uma sociedade compartilhada e comum.

*Estagiário sob supervisão da editora-assistente Vera Schmitz

 

 

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