“Será que o meu pai não percebe que esse discurso ameaça a minha integridade física?” Não há como mensurar o tamanho da mágoa que salta das palavras da cientista social e pesquisadora de 45 anos, que trabalha com comunidades quilombolas e indígenas. Nada diferente explicou durante a campanha política o afastamento de amigos e da família da professora Eliane Bragança de Matos, de 54, ou do professor de história Mateus Roque da Silva, de 22, entre tantos outros, frustrados pela incapacidade de conseguir despertar a empatia em familiares, que consideravam exagero quando apontavam a narrativa disseminada entre apoiadores do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) que ameaçava minorias, defensores dos direitos humanos, professores, mulheres, pessoas de pensamento progressista, entre tantas outras categorias. “Meu filho é homossexual. Os primos dele não ligam de apoiar esse discurso que poderá fazer dele a próxima vítima de linchamento por fanáticos”, lamenta a cientista social.
Mas do outro lado, boa parte dos bolsonaristas rebateram. “Mas que exagero. E queriam que a gente votasse no PT, que ataca a base da nossa família e está envolvido em corrupção, só porque o outro é contra gay, contra isso, contra aquilo? Ninguém está ameaçado. E olha, do jeito que está não dá mais. O discurso do Bolsonaro foi direto, reconheceu a fragilidade da população nas mãos de assaltantes, teve uma fala forte para acabar com a violência contra pessoa de bem, por isso pegou o pessoal”, afirma a autônoma Júnia Moura Andrade de Quaglia, de 55, ativista nas redes sociais em apoio ao presidente eleito. Na casa de Júnia, a tensão pós-campanha persiste e muitos dos encontros às vésperas do Natal não vão acontecer.
Mas o fenômeno é generalizado. Com Júnia, fazem coro outros bolsonaristas que agora seguem na defesa das ideias disruptivas, eixo do discurso do presidente eleito no Brasil: ultranacionalistas, conservadoras, religiosas e que reforçam a chamada nova direita. Famílias apartadas e divididas neste fim de ano são o efeito dessa guerra por narrativas estratégicas concatenadas, produzidas em quatro cantos do mundo e, pelos avanços tecnológicos, em condições de aterrissar instantaneamente em todos os celulares. Poucos escapam de se posicionar. É um cenário mais propenso a florescer em contextos de recessão econômica, – em que as pessoas com medo e inseguras em relação ao futuro, fragilizadas, estão mais predispostas a se inclinar para discursos autoritários. No Brasil, assume contornos particulares: dadas as históricas desigualdades sociais de uma sociedade que foi escravocrata, são latentes as predisposições pela “naturalização” da violência explícita ou velada do mais forte sobre o mais fraco.
FAKE NEWS Neste Natal, época em que tradicionalmente as famílias e amigos se reúnem, as mágoas afloram e a tensão persiste. O tão apregoado “perdão cristão” não chega. “Valores fundamentais para a minha vida foram atacados por pessoas da minha própria família”, afirma Mateus Roque da Silva. “Dos grupos de WhatsApp eu já tinha saído. Mas acompanhei pelo telefone da minha mãe as fake news disseminadas, que pipocavam o tempo todo, criticando as cotas universitárias, as relações homoafetivas, o direito ao aborto em casos de estupro da mulher, o ódio ao pensamento de esquerda. Eu sempre contra-argumentava com conteúdo e fui muito atacado nas redes sociais”, acrescenta o professor de história, em referência a memes que seus primos produziam em sua linha do tempo do Facebook, recortando as suas fotos e colando-as ao lado de Bolsonaro, como se Mateus o estivesse apoiando.
Se na grande família de Mateus a mãe tem 12 irmãos e, nos natais, as reuniões em geral atraíam mais de 60 pessoas, este ano o “clima ruim” persiste também para a professora Eliane Bragança de Matos, para quem este será um Natal mais seletivo. “A vivência em família da campanha presidencial foi muito conflituosa. Houve a exaltação de forma muito simplista de temas e da realidade brasileira muito complexos, inclusive questões que dizem respeito aos direitos individuais, coletivos e o respeito à dignidade humana”, afirma. “De forma reducionista, simplista e muito condenatória, minorias foram atacadas, gays, movimentos sociais, feministas, os pobres e os pretos. Tudo isso aflorou e as pessoas se mostraram incapazes de refletir e discutir, resgatar situações históricas. Todo discurso mimetizado, sem consistência, argumentos circulares”, acrescenta. Também na família de Eliane, em que os sete filhos sempre passaram o Natal juntos, este ano a festa emagreceu. “Foi por causa da briga. A campanha foi o detonador, porque na verdade, as discussões expressam valores. A reboque da discussão política, outros conflitos antigos emergiram, reforçando essas diferenças de formas de ver o mundo”, assinala ela.
DELICADO A pauta é sensível e delicada. Do Estatuto do Desarmamento, passando por questões relacionadas à igualdade de gêneros, respeito às minorias e à dignidade humana, o Estado laico, a autonomia do professor, a educação sexual nas escolas, além da tolerância à diversidade foram colocadas na berlinda. “A intolerância sempre caminha a reboque do medo: não se tolera o que não se conhece, pois, por detrás do desconhecimento está o medo”, afirma o padre Magno Marciete do Nascimento Oliveira, professor universitário, filósofo e doutor em teologia. “Os valores da família não estão em risco nem sendo deteriorados, mas foi a marca dos bons costumes e da defesa da família que veio a intolerância e a agressividade. O que está acontecendo é, na realidade, o medo de valorizar o que chamamos de diferenças: estamos diante de uma sociedade plural, que mostra as suas diferenças”, afirma o padre Magno.
Na avaliação dele, os temas abordados na campanha tocam em pontos históricos, culturais, antropológicos, relacionados à própria formação humana. “Dizem respeito à identidade da pessoa, na totalidade da vida. Até mesmo por causa disso, houve afastamento entre as pessoas. E é importante salientar que esta é uma possibilidade, já que, a maturidade das relações nos ensina que em determinados momentos há coisas que ferem nossos princípios e, por isso, nos distanciamos”, considera. Para o padre Magno, nas famílias, se as pessoas desejam retomar o relacionamento familiar, precisam fazer um esforço de empatia com a dor do outro. “Nesse esforço, tentamos ver o mundo pelo olhar do outro e, reconhecendo o meu equívoco, me aproximar do outro”, acrescenta.
Divergências resolvidas no churrasco
Quando ideias ameaçam valores fundamentais, a reconciliação entre familiares é sempre um desafio maior, inclusive na medida do afeto envolvido. Já entre conhecidos rompidos em decorrência de posições políticas, retomar a convivência social pode ser mais fácil. Foi assim que Hélvio de Assis Carvalho, de 54 anos, que trabalha com transporte escolar, aproveitou a confraternização de Natal para fazer um gesto de reaproximação com o colega de profissão Helvécio de Souza Mello, de 59.
“A opinião dele sobre política é muito diferente da minha. Um dia, conversávamos na porta da escola e o Mello usou um gesto pesado para se referir àqueles que não estavam votando no candidato dele”, conta Hélvio. “Respondi com mais agressividade ainda. Ele tomou um susto e nunca mais conversou comigo”, acrescenta. Na tradicional confraternização de fim de ano entre os trabalhadores do transporte escolar, Hélvio convidou Helvécio para o churrasco em sua casa. “Ele foi e voltamos a conversar”, conta Hélvio.
Mello assim relata o episódio: “Estávamos na porta da escola e surgiu o assunto de política. Eu falei mal do PT, ele não gostou e retrucou. Ficou alterado e cada um tentou impor ao outro o próprio ponto de vista”. A turma do deixa disso entrou na discussão. Foi quando o sinal da escola tocou. “Cada qual pegou os seus alunos e foi embora. Mas depois disso não nos falamos mais”, lembra Mello.
Depois da reconciliação, Mello e Hélvio querem paz. “Temos diferenças políticas e a gente vai se respeitar. Deixa ele gostar do PT e não se discute mais isso”, diz Mello. Por seu turno, Hélvio também retribuiu: “Ele quis votar no Bolsonaro, votou. Está no direito dele. Não vou cobrar dele se for um desastre, nem vou cobrar se tiver laranja e corrupção”.
Hélio e Helvécio decidiram neste fim de ano reforçar o tema que os une, não aqueles que os separa. Em comum para ambos está o interesse em torno da valorização da atividade do transporte escolar, o preço dos combustíveis e a precarização no exercício da função dos profissionais que conduzem os estudantes, afirma Mello. Portanto, em comum, a pauta dos interesses da classe. (BM)