O presidente Jair Bolsonaro assinou, ontem, um decreto que atinge em cheio a Esplanada dos Ministérios. O dispositivo extingue cargos efetivos vagos e que vierem a vagar dos quadros de pessoal da administração pública federal.
O pretexto argumentado pelo governo é de que a medida visa modernizar o Estado, adequando a estrutura de cargos às “exigências” da sociedade por serviços eficientes e uso racional dos recursos públicos, embora não estabeleça regras sobre como a decisão pode melhorar a qualidade da prestação de serviços e da máquina pública.
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Quase metade das metas do governo Bolsonaro não é cumpridaPacote de Bolsonaro reitera promessas de campanhaBolsonaro usa live para ressaltar 100 dias de governoO decreto não está contemplado nas 35 ações estabelecidas em janeiro pelo governo, mas vai em linha com o Decreto nº 9739/2019, que definiu critérios mais rigorosos para solicitação de concursos, sob argumento de buscar mais eficiência administrativa.
O termo eficiência, por sinal, é expresso em três ocasiões no conjunto de propostas, que se dividem entre 13 decretos, quatro projetos de lei complementar e um termo de compromisso.
A busca pela efetividade na administração pública é partilhada pelo decreto do “revogaço”, que cancela 250 outros decretos considerados por Bolsonaro como “desnecessários”.
“Temos uma parafernália de instruções normativas, resoluções, portarias e acordos interministeriais que, hoje, se avolumam em 14 mil decretos numerados e, pasmem, mais de 13 mil não numerados”, declarou o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. O governo também pretende eliminar conselhos federais — hoje são cerca de 700, mas o número pode cair para 50.
Na Esplanada, serão extintos 13 mil cargos abertos e que vierem a ficar vagos na administração federal. De acordo com o secretário de Gestão e Desempenho de Pessoal do Ministério da Economia, Wagner Lenhart, são funções que se tornaram obsoletas, como jardineiro, mestre de lancha, atendente bilíngue, operador de máquinas agrícolas, artífice de artes gráficas e auxiliar de enfermagem. Do total, 12.315 já estão desocupados e serão suprimidos imediatamente.
As funções eram, em grande parte, ocupadas por servidores de nível intermediário ou auxiliar — ainda há 916 em alguns desses cargos na administração e serão extintos quando os funcionários se aposentarem.
Serão extintos cargos vagos de agente de saúde pública, auxiliar de enfermagem e guarda de endemias. “Agente de saúde pública e guarda de endemias desempenham atividades que passaram a ser exercidas pelos estados”, explica Lenhart.
Ele ressalta ainda que outras rodadas de “limpeza” de cargos virão. A meta do governo é ter uma estrutura de cargos mais enxuta. No briefing da entrevista que ocorrerá hoje para falar das extinções, o recado é claro: “Hoje, existem mais de 700 mil cargos efetivos. Destes, cerca de 250 mil estão vagos, e, portanto, poderiam vir a ser providos.”
Eficácia
A argumentação da eficácia é citada pelo governo também na proposta da autonomia do Banco Central (leia mais na página 7), que espera com o projeto de lei assinado ontem o aumento da produtividade, da eficiência na economia e, em última instância, do crescimento sustentável.
O outro decreto que trata sobre efetividade é o que possibilita a doação de bens móveis para o governo, sob o pretexto de, com uma atuação socialmente responsável, estimular o fomento e o engajamento colaborativo entre sociedade e o governo.
Decretos, leis assinadas e metas apresentadas pelo governo são distribuídos em cinco grupos: institucional, econômico, social, infraestrutura e meio ambiente. No social, o governo confirmou o pagamento da 13ª parcela do Bolsa-Família e entregou o projeto que regulamenta a educação domiciliar, o chamado homeschooling.
Em setembro de 2018, ainda durante o governo do ex-presidente Michel Temer, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os pais não podem tirar filhos da escola para ensiná-los em casa. Nesse último caso, a medida virá como projeto de lei, para que tenha vigência imediata.
Mesmo sob formato de projeto de lei, Lorenzoni prevê dificuldades na aprovação por resistências de parlamentares “de esquerda”. Alfinetadas à oposição e os governos anteriores, sobretudo do PT, deram a tônica quando o chefe da Casa Civil explicou o termo de compromisso assinado para implementar o sistema de compliance dentro dos ministérios da Saúde e da Agricultura, geridos pelos deputados de carreira Luiz Henrique Mandetta e Tereza Cristina, ambos do DEM.
A ideia é que o governo dê o exemplo no combate à corrupção. “Para, exatamente, mudar a cultura que, durante décadas, foi completamente afastado daquilo que é um bom, serviço público, que é servir à cidadania”, declarou.
O discurso de campanha também norteou parte do discurso de Bolsonaro. Ele disse que o governo pretende trabalhar com foco na valorização das famílias, nos valores cristãos, na educação de qualidade e sem viés ideológico. No Meio Ambiente, entretanto, o governo carregou parte da ideologia defendida pela gestão, que se diz contra o “ativismo ambiental”, ao alterar a conversão de multa simples em serviço de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente.
Perigo na falta de reposição
Se as intenções do governo se concretizarem, com o travamento de concursos públicos e a não substituição de funcionários aposentados, o Executivo federal corre o risco de diminuir a produtividade nos próximos cinco anos, mesmo que a atual gestão dedique um robusto percentual do orçamento em tecnologia e inovação.
Pelos dados do Ministério da Economia, em 2023, a população poderá contar com apenas 53,7% do atual efetivo — 621.421 profissionais ativos.
No total, seriam 179.161 pessoas a menos no fim do próximo quinquênio. Porém, é importante lembrar que mais de 108 mil funcionários estão no abono permanência (continuam trabalhando, mas sem o desconto da Previdência nos salários).
Sendo assim, somados, no total, 287.161 servidores federais se afastarão até 2023. A máquina pública enxuta tem grande apelo para sociedade, cansada dos privilégios e da duvidosa contrapartida na qualidade no atendimento. Porém, até os mais ferrenhos críticos das benesses recebidas por algumas classes admitem que, nesse ritmo, o governo pode não elevar a eficiência e a produtividade.
À medida que a população cresce, o número de profissionais no serviço público tem que acompanhar. Em 2017, a população brasileira era de 207,3 milhões de pessoas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, a população cresceu 0,82% (208,4 milhões).
“Efetivamente, não vai ser possível fazer atendimento de forma satisfatória com esse número reduzido de pessoas na administração federal”, afirma Emerson Casali, especialista em relações de trabalho. Assim, Casali acredita que o governo terá de encontrar um meio de sanar o dilema, “nem que seja na forma de incentivo para que as pessoas trabalhem por mais tempo”.
Paulo César Régis de Souza, vice-presidente executivo da Associação Nacional dos Servidores da Previdência e da Seguridade Social (Anasps), há anos denuncia o caos no INSS.
Para ele, o INSS Digital, no qual o beneficiário marca consultas e atendimento pela internet, seria razoável, não fossem as brechas no sistema e a previsão de contratação de mão de obra terceirizada para suprir os aposentados.
“Não adianta criar um superministério da Justiça e da Segurança Pública, para fora da administração, e deixar que terceirizados com salários miseráveis acessem dados sigilosos e, assim, se exponham aos corruptores”, disse Souza, que teme pela substituição de concursados por estagiários e a falta de treinamento.
“O treinamento é no balcão, no dia a dia. Imagine como será o atendimento desse pessoal sem qualificação? A sociedade é que vai pagar o preço disso tudo”.
O 13º no lugar de um reajuste
O governo confirmou a criação do 13º salário para os beneficiários do Programa Bolsa-Família como uma das metas consolidadas nos primeiros 100 dias da gestão de Jair Bolsonaro. O anúncio da inclusão dessa parcela — ao custo estimado de R$ 2,58 bilhões, para 4,1 milhões de famílias — foi uma estratégia para manter o valor mensal do benefício congelado em R$ 41 por pessoa (até o limite de R$ 205 por família).
Mesmo sem reajuste, o efeito no bolso dos mais pobres será significativo. Nos cálculos do economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, essa 13ª parcela, na prática, equivale a um reajuste nominal de 8,33%. “Descontada a inflação dos últimos 12 meses (3,89%), resulta em ganho real de 4,3%”, destacou.
Para se ter uma ideia do retorno, explicou Neri, de 2015 a 2017, quando não houve incentivo algum ao programa, a extrema pobreza aumentou em 40%.
A medida do governo faria ainda mais efeito se o dinheiro caísse na conta dos mais pobres no momento que eles mais precisassem. “Em vez do depósito em dezembro, quando a economia está aquecida e é mais fácil conseguir emprego, poderia ser quando fosse necessário comprar, por exemplo, material escolar. Ou em caso de doença”, ensina Neri. “É muito importante destacar que a medida produz ganhos em pobreza, desigualdade e no PIB, preservando as contas públicas. Mulheres, crianças e nordestinos são os principais beneficiados”, confirmou.
A medida foi divulgada por meio do Twitter do presidente Jair Bolsonaro, logo no início da manhã de ontem. “Oficializamos hoje, junto ao Ministério da Cidadania, a criação do 13º salário para os beneficiários do Bolsa-Família, recursos oriundos em sua esmagadora maioria de desvios e recebimentos indevidos. Grande dia!”, escreveu o chefe do Planalto.
Em compensação, o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, também afirmou que não haverá reajuste para os beneficiários, exatamente por causa da parcela extra, mas que o aumento pode vir depois, por exemplo, da aprovação da reforma da Previdência. “Com o equilíbrio fiscal que será obtido com a nova Previdência, não há nenhum problema de se trabalhar com isso, porque estamos com orçamento em elaboração para o ano que vem”.
De acordo com o Ministério da Cidadania, responsável pelo repasse, o Planalto deve enviar ao Congresso uma medida provisória em outubro, a fim de que ela entre em vigor em dezembro.
Esse planejamento foi feito, porque o texto de uma MP tem prazo de 60 dias, que podem ser prorrogáveis por mais 60. Ou seja, se fosse mandado agora para o Congresso, a medida corria o risco de não ser votada e acabar perdendo a validade.
Osmar Terra, ministro da Cidadania, garantiu que o dinheiro para o pagamento do benefício está garantido no Orçamento, depois que a Junta Orçamentária aprovou a iniciativa, com o aval do Ministério da Economia.
Crítica
A presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), deputada Gleisi Hoffmann (PR), criticou a iniciativa. Lembrou que o Bolsa-Família foi criado no primeiro governo petista, pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003. E alfinetou Bolsonaro, ao falar que a novidade dos 100 dias de governo do pesselista seria “uma fraude” ao Bolsa-Família.
“Até o anúncio de hoje (ontem), sobre o 13º salário, não é positiva. Ela é um engano e tenta fraudar o Bolsa-Família, um projeto complementar de renda, para a população pobre. Temos 50% da população ganhando até dois salários mínimos por mês e, grande parte, não recebe nem um salário porque trabalha na informalidade. Só conseguimos combater isso com valorização do mínimo e criação de empregos”, disse Gleisi.
Educação contemplada
O pacote de Jair Bolsonaro tem dois projetos de lei voltados para a área da educação. Um é a Política Nacional de Alfabetização (PNA), a cargo do Ministério da Educação (MEC). O outro, o ensino domiciliar, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), mas com o acompanhamento feito pelo próprio MEC.
O decreto da PNA foca no método fônico, que prioriza a relação entre letras e sons para a formação de sílabas e palavras — apesar disso, o MEC informou, por meio de nota, que “não determina nenhum método especificamente”, e que a adesão dos estados e municípios será “voluntariosa”.
A pasta apresentará um caderno explicando “as diretrizes, os princípios e os objetivos da PNA”. O texto do decreto, entretanto, já dá diretrizes gerais, como a “priorização da alfabetização no primeiro ano do ensino fundamental”; o “incentivo a práticas de ensino para o desenvolvimento da linguagem oral e da literacia emergente na educação infantil”; e a “participação das famílias no processo de alfabetização por meio de ações de cooperação e integração entre famílias e comunidade escolar”.
O texto enviado pelo MEC à reportagem do Correio também afirma que o programa se baseia em “métodos científicos”, como foi feito em países como Portugal, França, Reino Unido, EUA e Finlândia. Com o PNA, o governo pretende “alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º ano do ensino fundamental”, além de “elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5%”, meta que estava programada para 2015, e erradicar casos de analfabetismo absoluto (quem não sabe ler nem escrever) e analfabetismo funcional (quem não consegue compreender textos simples ou fazer operações matemáticas). Essas são, respectivamente as metas 5 e 9 do Plano Nacional da Educação (PNE).
No caso do ensino domiciliar, o PL traz no texto os requisitos mínimos que pais ou responsáveis legais deverão cumprir para exercer a opção, tais como o cadastro em plataforma a ser oferecida pelo Ministério da Educação e avaliação das crianças e adolescentes.
O secretário-adjunto da Secretaria Nacional da Família do MMFDH, Pedro Hollanda, defende a medida. “Há estudos que mostram que a capacidade cognitiva e social não são diferentes entre os alunos da educação escolar e os da domiciliar. O princípio que norteia é que pais devem escolher o tipo de instrução dos filhos. Isso, baseado em tratados de direitos humanos”, garantiu Hollanda.
Para o professor aposentado da Universidade de Brasília e especialista em educação Erasto Mendonça, porém, não há vantagens no modelo. “A educação domiciliar deve ser uma exceção, em casos de absoluta necessidade. A escola não é só um espaço de educação, mas também de socialização e de convivência da criança”, criticou.
Inicialmente, o governo pretendia regulamentar a educação domiciliar por medida provisória, mas mudou de ideia. A ministra da Mulher, Damares Alves, explicou que a Casa Civil achou melhor conduzir por projeto de lei. Assinar uma MP traria desgaste para a articulação política do governo, empenhada na reforma da Previdência.
A Casa Civil também analisou que poderia trazer insegurança para as famílias na hipótese de a medida ser derrubada no Congresso. “E as famílias que optaram por este método? E as crianças, que são o mais importante, ficarão sem salvaguarda, sem ano escolar? O objetivo era dar a escolha aos pais, mas a MP tinha riscos”, explicou Damares.
Pedido negado no Supremo
A Educação Domiciliar já foi tema de debate outras vezes e, inclusive, teve recurso negado no Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo a fundamentação adotada pela maioria dos ministros, o pedido formulado não pôde ser acolhido, uma vez que não havia legislação que regulamentasse preceitos e regras aplicáveis a essa modalidade de ensino.
“Não há nenhum bônus aos estudantes e, entre os ônus, está a falta de convivência, uma das coisas mais importantes para a criança em idade escolar”, alertou o Supremo.
Rigidez contra o tráfico
Outro ato entre os 18 assinados pelo presidente Jair Bolsonaro foi o decreto que aprova a nova Política Nacional de Drogas. O texto, que tem o objetivo de estabelecer novas ações para a área, foca em repressão, prevenção e tratamento.
O secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas da Secretaria Especial de Desenvolvimento Social, Quirino Cordeiro, afirma que o ponto central do decreto é apresentar uma posição contrária à legalização das drogas no país.
“É uma questão inicial do decreto que entrou por respeitar a observação de que a maior parte da população é contra a legalização”, explica. Outro ponto destacado pelo secretário se refere ao âmbito da repressão.
“No decreto, fica clara a posição do governo de que a identificação do indivíduo como traficante não deve passar pela quantidade de drogas que o ele porta, mas sim pelas circunstâncias em que foi flagrado”, ressalta.
Quirino justifica que a mudança visa analisar todas as circunstâncias do fato para que o portador não consiga escapar apenas por carregar menos quantidade da substância ilícita consigo.
Para Quirino, a importância do decreto anunciado na comemoração de 100 dias do governo Bolsonaro é mostrar, logo no início da gestão, a preocupação com a área.
“Esse decreto modifica de maneira substancial a política de drogas do país. O governo federal passa a encarar os problemas das drogas ao analisar a situação sob várias óticas”, esclarece.
Ao todo, quatro ministérios se envolveram na elaboração do decreto: o Ministério da Cidadania, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Saúde e Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Outros pontos presentes no texto são referentes ao tratamento, que passa a ser focado em abstinência.
“A redução de danos deixa de ser o objetivo do indivíduo que apresenta dependência química”. Na área de prevenção, o objetivo é fazer ações nas escolas do país. “Os públicos-alvos das ações são crianças e adolescentes.
Além disso, o foco passa a ser as escolas, porque elas estão presentes em todos os municípios brasileiros”, afirma.
Colaborou Vicente Nunes
* Estagiária sob a supervisão de Leonardo Meireles .