Em um momento em que o Executivo e o Legislativo demonstraram apaziguamento político, com o fim das tensões entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia e o da República, Jair Bolsonaro, o impacto que abalou os pilares da pátria partiu do Poder Judiciário.
Por meio de um inquérito aberto pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) para “apurar ataques e fake news” contra a Corte, o ministro Alexandre de Moraes decidiu censurar reportagem jornalística e determinou que a Polícia Federal cumprisse mandados de busca e apreensão contra oito pessoas que criticaram o tribunal nas redes sociais.
A situação ficou ainda mais turbulenta quando a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, defendeu o arquivamento do inquérito — explicando, entre outros pontos, que só o Ministério Público Federal pode pedir medidas como busca e apreensão —, porém, ela teve os argumentos negados e classificados como “intempestivos” por Moraes.
Na própria decisão em que determina que o site O Antagonista e a revista Crusoé retirem do ar uma reportagem que cita Toffoli, Moraes afirma que o ato ocorre após solicitação do presidente do Supremo. Toffoli fez o pedido por meio de mensagem de texto, durante uma viagem, ao ler a publicação que o liga a executivos da empreiteira Odebrecht.
Na mensagem, o ex-presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, hoje delator da Operação Lava-Jato, revela que o codinome “O amigo do amigo de meu pai” se refere a Toffoli. A publicação fala em “tratativas” em andamento com a pessoa citada, mas não cita nenhuma irregularidade.
Apesar de retirar a reportagem do ar no mesmo dia, o grupo que controla os veículos de comunicação alvo da decisão de Moraes revelou que foi multado em R$ 100 mil.
Ao longo do dia, procuradores, deputados, senadores e entidades de classe, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Transparência Internacional, se manifestaram contra as decisões do tribunal. Em uma mensagem publicada nas redes sociais, sem citar o caso em si, o presidente Jair Bolsonaro defendeu a liberdade de expressão.
“Acredito no Brasil e em suas instituições e respeito a autonomia dos poderes, como escrito em nossa Constituição. São princípios indispensáveis para uma democracia. Dito isso, minha posição sempre será favorável à liberdade de expressão, direito legítimo e inviolável”, escreveu.
O ministro da Justiça, Sérgio Moro, foi questionado sobre o assunto, e disse que a situação deve ser resolvida no próprio Judiciário. Foi a primeira vez que ele se manifestou sobre o tema.
“Essa é uma questão que está com o Supremo, espero que o Supremo resolva. A posição minha, pessoal, sempre foi pautada pela liberdade de expressão”, disse. Ainda ontem, o ministro Edson Fachin, do Supremo, deu prazo de cinco dias para que Moraes dê mais dados sobre o inquérito, depois de ser acionado pela Rede Sustentabilidade.
O inquérito foi aberto em 14 de março e anunciado por Toffoli no começo de uma sessão plenária. Na ocasião, o ministro não citou os nomes de investigados, decretou sigilo de Justiça no caso e disse que “seriam investigados ataques à Corte e aos seus integrantes”. No discurso, ele também destacou a importância de se proteger a liberdade de expressão.
Embates
Em manifestação enviada ao Supremo, no meio da tarde de ontem, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, afirmou que as decisões — tanto as que censuram conteúdo jornalístico quanto os cumprimentos dos mandados — são inconstitucionais.
No texto, Dodge é incisiva e informa que “promove” o arquivamento do inquérito, deixando claro que não se trata de um pedido. “A Procuradora-Geral da República, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, com fundamento nos princípios do devido processo legal e do sistema penal acusatório estabelecidos pela Constituição de 1988, vem promover o arquivamento deste inquérito”, diz o trecho inicial da peça.
“Nesta perspectiva constitucional, de garantia do regime democrático, do devido processo legal e do sistema penal acusatório, a decisão que determinou de ofício a instauração deste inquérito designou seu relator sem observar o princípio da livre distribuição e deu-lhe poderes instrutórios, quebrou a garantia da imparcialidade judicial na atuação criminal, além de obstar acesso do titular da ação penal à investigação. Na sequência, os atos judiciais instrutórios da investigação e determinantes de diligências investigativas também ferem o sistema penal acusatório e a Constituição. São vícios insanáveis sob a ótica constitucional”, escreve Dodge, acrescentando que o pedido de arquivamento era “irrecusável”.
Alexandre de Moraes rejeitou os argumentos, aos quais chamou de “intempestivos” e baseados em “premissas completamente equivocadas”.
“O pleito da DD. Procuradora Geral da República não encontra qualquer respaldo legal, além de ser intempestivo, e, se baseando em premissas absolutamente equivocadas, pretender, inconstitucional e ilegalmente, interpretar o regimento da Corte e anular decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal”, argumentou. Moraes informou que, consultado, Toffoli aprovou a prorrogação do inquérito por mais 90 dias.
Associação se manifesta
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) entrou com ações na Suprema Corte questionando o inquérito. O presidente da entidade, José Robalinho, afirma que um habeas corpus coletivo, que vale para todos os eventuais alvos, e um mandado de segurança, válido para procuradores, não podem ser julgados por Moraes, e que a decisão final deve ficar a cargo do colegiado do Tribunal.
“O Poder Judiciário não pode se envolver na parte de investigação, pois será levado a ele o julgamento. Com todo respeito, esse inquérito não pode prevalecer. Raquel foi muito correta, corajosa e coerente. Mas a manifestação dela vai para o relator, que já negou. As que apresentamos terão que ser apreciadas por outro ministro e posteriormente levadas ao plenário”, disse.
Cronologia
14 de março — STF abre inquérito para investigar notícias fraudulentas”, ofensas e ameaças, que “atingem a honorabilidade e a segurança” da Corte
15 de março — PGR pede ao Supremo que dê informações sobre o objeto do inquérito e eventual alvo com foro privilegiado
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21 de março — PF cumpre os primeiros mandados de busca e apreensão, em São Paulo e Alagoas, contra duas essoas que teriam criticado o Supremo
15 de abril — Alexandre de Moraes determina que o site O Antagonista e a revista Crusoé retirem do ar reportagem que cita o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo
16 de abril — Expedidos mandados de busca e apreensão contra oito alvos, entre eles, o general Paulo Chagas
» Raquel Dodge aponta inconstitucionalidade no inquérito pede arquivamento
» Moraes rejeita o arquivamento das as investigações, e Toffoli prorroga diligências por mais 90 dias
Até general como alvo
Passava das 6h quando equipes da Polícia Federal chegaram à casa do general da reserva do Exército Paulo Chagas, ex-candidato ao governo do Distrito Federal. Ele foi um dos oito alvos de mandados de busca e apreensão, acusados de ataques ao Supremo nas redes.
A ordem foi expedida pelo ministro Alexandre de Moraes. Na residência do oficial, em Taguatinga, os agentes foram recebidos pela filha do militar. Ele não estava em casa, mas teve o computador pessoal levado para a realização de perícia.
Moraes justifica o mandado contra ele dizendo que Chagas “defendeu a criação de um Tribunal de Exceção para julgamento dos ministros do STF ou mesmo substituí-los”.
Ao Correio, Paulo Chagas conta que não vê crime em suas declarações. Ele diz que seus comentários se referiram à conjuntura jurídica como um todo. “Eu não falo mal do tribunal, que é uma instituição necessária. Mas falei mal do conjunto da obra dos juízes. O conjunto da obra tem criado instabilidade jurídica no Brasil e ninguém pode se sentir à vontade com isso. Eu gosto de dizer o que penso, o que sinto”, disse.
Na ordem enviada à PF, Moraes cita artigos da Lei de Segurança Nacional, promulgada durante a ditadura militar, e determina o bloqueio das redes sociais dos investigados.
Além de Chagas, foram alvos Omar Rocha Fagundes, Isabella Sanches, Carlos Antônio dos Santos, Hermínio Aparecido Nadin, Gustavo de Carvalho e Silva e Sérgio Barbosa de Barros. Todos são acusados de usar a internet para “cometer crime” ou “atacar o Supremo”.
Na decisão, Moraes afirma, por exemplo, que Omar (da Polícia Civil de Goiás) incita a população a impedir o livre exercício dos poderes da União. “O Peru fechou a Corte Suprema do país. Nós também podemos! Pressão total contra o STF’ (publicação de 16/03/2019)”, teria postado o investigado.
Especialistas
A advogada constitucionalista Vera Chemim, especialista em STF, acredita que, diante dos fatos inusitados, a procuradora Raquel Dodge agiu corretamente.
“O Ministério Público não foi consultado sobre esse inquérito, que já nasceu violando a Constituição. Agora, para sanar o erro, a procuradora fez bem em pedir o arquivamento. Mas, diante da negativa, é possível que o próprio Supremo envie o caso para o MPF, a fim de que seja aberto um novo inquérito, do zero, preservando a competência legal do Ministério Público”, disse.
O cientista político Geraldo Tadeu, coordenador do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia da Uerj, destaca que o caso está tomando um caminho perigoso. “O Supremo quer mostrar seu poder de reação.
O tribunal vem sendo atacado por seguidores do presidente nas redes sociais e agiu. Mas esse é um processo bastante perigoso. Os Poderes, que são independentes e harmônicos, segundo a Constituição, estão em clima de enfrentamento. Dificilmente, o Supremo volta atrás, mas o chefe do Executivo deveria pedir que seus apoiadores se contenham”, disse.