Derrotado pelo presidente Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018, o petista Fernando Haddad afirma que o governo federal constrói uma pauta negativa diária, com assuntos de irrelevância brutal para o país.
“Ele tem ocupado, inclusive, o espaço da oposição”, disse o ex-prefeito de São Paulo, em entrevista ao programa CB.Poder, uma parceria entre o Correio e a TV Brasília.
Durante o programa de 40 minutos, Haddad falou sobre educação, reformas, política externa, entre outros temas, e lamentou que os dados que deram base à proposta do Executivo para a reforma da Previdência tenham sido apresentados à sociedade apenas ontem, depois da votação do texto na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
“A CCJ votou no escuro”, frisou. Na avaliação dele, as mudanças deveriam começar pelos regimes próprios, ou seja, por servidores públicos, em acordo com governadores e prefeitos, e só depois evoluírem para alterações no Regime Geral. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
A oposição parece não ter feito muito para barrar as medidas do governo que considera ruins. Tem faltado união entre os partidos?
Na verdade, o governo tem ocupado, inclusive, o espaço da oposição e consegue construir uma pauta negativa praticamente diariamente, com assuntos de uma irrelevância brutal para o país. O Caged, do antigo Ministério do Trabalho, soltou dados sobre 43 mil postos de trabalho a menos em um país que já está sofrendo com desemprego. A inflação está retomando em escalada, sobretudo com o enorme aumento do preço dos combustíveis. A gasolina já subiu 30%, e o diesel, 24%, este ano. O governo não consegue aprovar nenhum projeto relevante no Congresso Nacional. Segundo os líderes do próprio PSL, ele não tem base no Congresso, parece não estar preocupado em constituir uma base. Então, parece que ele, infelizmente, reconhecidamente, se diz não preparado para o cargo, com uma dificuldade, inclusive, de gerenciar assuntos domésticos, com a própria família, e sem dar para o país uma diretriz clara, gerando desconfiança por parte dos empresários e, agora, dos próprios consumidores, o que pode agravar uma situação que já não é confortável.
O senhor diz que a PEC da Previdência tira direitos, mas há um consenso de que é preciso fazer uma reforma.
Nós somos contra o regime de capitalização. As pessoas se esquecem que o Lula fez uma reforma da Previdência com os sindicatos. A Dilma fez reforma da Previdência sentada com os sindicatos. Você discute democraticamente os ajustes que precisam ser feitos. Graças a Deus, a população está envelhecendo. Quero que o Guedes (ministro da Economia, Paulo Guedes) me diga em que país ele está se inspirando. Se for no Chile, que ele considera o Pinochet a maior obra-prima da política, um ditador neoliberal, não dá certo. Aliás, Bolsonaro vai ao Chile e toma um puxão de orelha por ter elogiado um ditador que ninguém mais respeita. Temos que acabar com essa história de elogiar ditadores. Vai a Israel e perdoa holocausto e diz que o nazismo é de esquerda. Nós temos de parar de falsificar a história. História é história, e fatos são fatos. Quem tem compromisso com o arbítrio não é democrático, e ponto. O PT tem a obrigação de dizer o que vai acontecer. Vamos criar uma legião de idosos pobres. Nós conseguimos superar isso com muito custo com política de valorização do salário mínimo, com a Constituição de 1988. Não tem mais idosos miseráveis. No plano de governo, nós conversamos com governadores e prefeitos que vinham pedir para incluirmos na reforma os regimes próprios, e tivemos que abrir uma mesa de negociação. Reconhecemos que existe um problema dos entes federados, e nós vamos abrir uma negociação. No nosso entendimento, era para sentar com governadores, prefeitos e servidores, como primeiro passo, para arrumar a casa no plano do Estado. Eu sou a favor do regime único, mas acho que ele tem de ser construído, começando pela reforma dos regimes próprios.
Este momento não seria próprio para a oposição se articular melhor? Há dificuldade de união? Outros partidos de oposição estão claramente separando o PT.
Na Câmara, eu não vejo assim, pelo contrário. Até a Rede e o PDT estão unidos a PSol, PT, PCdoB e PSB em uma frente mais ampla que tem lá os expedientes legais previstos para impedir reformas, que vão de encontro ao que a gente imagina que não seja justo. Por exemplo, na questão da reforma da Previdência, houve uma confluência. Por que mexer com o Benefício de Prestação Continuada, que envolve idosos e pessoas com deficiência? Aposentadoria rural. Você sabia que do R$ 1 trilhão de que se fala mais de R$ 800 bilhões afetam diretamente a vida de quem ganha até três salários mínimos? Então, o discurso do governo de que a reforma da Previdência combate privilégios é falso. Isso se atesta porque o próprio governo se recusa a abrir para a imprensa os próprios números da reforma e as planilhas de cálculos. Foi aberto depois da implicação do Ministério Público. Pela LAI (Lei de Acesso à Informação), eles não abriram. Passou toda a CCJ sem abrir. Eles recusaram a Lei de Acesso à Informação. É quase um caso de improbidade administrativa ter os números não divulgados. Deixaram passar na CCJ, que votou nas escuras e não sabia no que estava votando.
O que a oposição pode fazer para ajudar o país a sair do imbróglio em que está metido, principalmente na questão econômica?
A primeira coisa é trazer lucidez para o debate. Quando eu falo que o regime de capitalização não vai dar certo no Brasil, invoco experiências internacionais para demonstrar essa tese. Eu estou contribuindo no melhor para o país e, daqui a 30 anos, quando vão dizer, 'onde estava a oposição que não alertou o país sobre os riscos?' É o que procuro fazer. No projeto anticrime do Moro (ministro da Justiça, Sérgio Moro), o que de fato acontece é que a violência vai aumentar, sobretudo a repressão, e um recorde de encarceramento. Somos um país que prende muito e mal, que deixa bandido solto e bota em risco a integridade física das pessoas. Você tem 8% de resolução de homicídio no Brasil. Em países desenvolvidos, esse índice é superior a 50%. Em vez de focar no que importa para as pessoas saírem de casa e irem trabalhar sabendo que vão voltar íntegras, estamos trabalhando desfocando atenção, dizendo que o problema é o policial poder matar sob forte emoção e dizer que essa pessoa não pode ser um excludente de licitude. A legítima defesa já está disciplinada pela jurisprudência. Não há dúvida.
Na área do senhor, que é educação, como está vendo a gestão do governo Bolsonaro?
Ele já demitiu dois ministros. Na minha opinião, tem uns cinco na fila que precisavam ser substituídos. Nós temos um problema no Ministério do Meio Ambiente, que está sendo completamente desmontado, vários órgãos ambientais estão sendo decapitados. O ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), por exemplo, ninguém mais sabe o que faz. Nós temos um problema gravíssimo no Itamaraty, que é nosso cartão de visitas paro o mundo. Temos uma pessoa completamente despreparada, que não tinha nem carreira de peso para assumir a chancelaria, metendo os pés pelas mãos. Temos problemas com árabes, judeus e europeus; com França, Portugal, Argentina, a troco do quê? Quando o país compra uma briga, tem de comprar uma disputa para trazer algum benefício, e estamos dispersando energia com o que não interessa, em vez de focar em relações comerciais e paz no continente. O país tem de ter peso nos fóruns internacionais. O ministro do Turismo (Marcelo Álvaro Antonio) já tem 10 denúncias, acusação no MP com confissão de membros do partido, e é como se nada tivesse acontecido. No Ministério da Educação, foi trocar seis por meia dúzia. Não é conhecido da comunidade educacional.
O senhor teme pelas universidades?
A universidade no Brasil, a pública sobretudo, é onde se gera pensamento criativo e crítico. Mais de 90% da pesquisa é feita pelo Estado por meio das universidades e das agências de pesquisa. Bolsonaro falou que não, que é na faculdade particular que é feita a pesquisa. O desconhecimento dele do Brasil é medonho. Saíram vários documentos e artigos no jornal. É ignorância ou má-fé. Na minha opinião, as duas coisas.
Com relação às questões internacionais, houve a visita de Gleisi Hoffmann (presidente do PT) à Venezuela, que foi muito criticada aqui no Brasil. Como o senhor viu essa iniciativa dela?
O PT tem tradição de respeito à determinação dos povos, da qual jamais vai abrir mão. O PT tem firme convicção de que não se deve misturar assuntos internos, que o mundo desenvolvido faz quando é do seu interesse. Gleisi tomou a decisão de prestigiar a posse em nome desses princípios. Em entrevistas, eu disse o seguinte: a comunicação deveria ter sido feita de outra maneira. Da maneira como foi comunicada, não foi a expressão mais fiel.
O senhor iria?
Depende muito das circunstâncias. Se eu tivesse sido eleito, a gente não estaria discutindo intervenção militar na Venezuela, porque os Estados Unidos jamais teriam a ousadia de entrar na América do Sul passando por cima do interesse brasileiro. Jamais fariam uma aventura na Venezuela, se eu fosse presidente do Brasil. Nós já demos demonstração, no governo Lula, de como fazer, em 2003, quando o Lula e o Bush (George W. Bush, então presidente americano) fizeram um acordo em torno da questão da Venezuela. Eles compuseram o grupo de amigos da Venezuela, e cercaram de cuidados para que saísse da crise institucional, garantindo os direitos às relações internacionais e evitando o que sempre foi uma ameaça naquele país. A Venezuela tem uma grande reserva de petróleo, então, vai ser um lugar cobiçado sempre, por China, Estados Unidos e até Rússia. Temos de ter clareza que é um vizinho que inspira cuidados e, institucionalmente, a Venezuela precisa se estabilizar. E o Brasil pode oferecer apoio quanto a isso.
Em relação aos Estados Unidos, como o senhor vê a aproximação feita pelo governo Bolsonaro?
Estamos nos aproximando pelo pior lado, que é o do conflito. Por exemplo: quando você tem só dois países do mundo que mudaram a embaixada para Jerusalém. Nós temos amizade com os povos árabes de décadas. Se você somar o que compram da gente, é mais do que muitos países desenvolvidos. Não é uma reivindicação de fora para dentro e, então, nós mudamos. Se quer fazer uma aproximação com os Estados Unidos, faça pelo lado certo, pelo lado da ciência, pelo lado da cooperação, não pelo lado ideológico. Isso traz prejuízo, inclusive, em questões de emprego para o Brasil. É um alinhamento equivocado. Um erro de agenda brigar com o mundo para fazer coro com Trump (presidente dos EUA, Donald Trump), que é considerado um atraso de vida na questão ambiental. Para que vamos fazer isso? O que vamos ganhar com isso, se a gente exporta para países que têm meio ambiente como critério de parceria comercial? Até hoje, não fechamos acordo com a União Europeia porque o Macron (Emmanuel Macron, presidente da França) já disse que, sem o critério de meio ambiente, não tem acordo.
O senhor vai ser candidato pelo PT novamente?
Tem muito chão pela frente. Eu nunca agi, na minha vida, por projeto pessoal. Respeito quem tem, mas não é minha escola. Minha escola é fazer parte de um time e estar à disposição desse time. Se for escalado, também não diria não. Estou pronto para os desafios. Eu não tenho essa coisa de ambição pessoal. Um dia, o Lula me perguntou: 'Qual é seu projeto pessoal?' Eu sou muito ambicioso para ter projeto pessoal. Você só transforma a sociedade com um projeto coletivo, e não pode ficar de vaidade de 'ah, eu só brinco se for governador, só brinco se eu for presidente'. Eu brinquei, no bom sentido, quando aceitei um cargo na Assessoria Especial do Ministério do Planejamento. Dois anos depois, eu era ministro. Não importa muito a posição, importa o projeto. Eu era um profissional maduro, era subsecretário de Finanças de São Paulo e vim para uma posição que todo mundo consideraria subalterna. Eu não achei. Achei que estava prestando serviço para o país.
O ex-presidente Lula pode sair para o regime semiaberto. O senhor acha que isso ajuda o partido?
Evidente. Acabo de ouvir uma explicação do juiz Mário Júnior em que ele diz, com todas as letras, segundo a lei em vigor, que os 13 meses em que Lula permaneceu preso têm de ser abatidos dos oito anos e 10 meses que ele foi condenado como fixação do regime. Como dá menos de oito anos, o regime do Lula hoje já deveria ser o semiaberto.
Fazendo um balanço, quais foram os erros que o PT cometeu nas eleições?
As projeções do segundo turno, até o fim de setembro, davam vitória para nós. Eu acredito que não tenhamos nos atualizado em relação à tecnologia da informação da campanha eleitoral. O que aconteceu na última semana do primeiro turno, nós efetivamente não estávamos preparados. Por exemplo, a disseminação de fake news. Já peguei vários recortes de pesquisas muito bem-feitas. O público evangélico foi decisivo na eleição do Bolsonaro e muito influenciado por fake news.
O senhor esteve com o Bernie Sanders (candidato derrotado por Hillary Clinton nas eleições primárias do Partido Democrata dos EUA) no início do ano. Há algum desdobramento daquela conversa?
Houve um desdobramento importante. Na verdade, foi um encontro muito rápido, falei com ele e a esposa, em um ambiente de lançamento de uma Internacional Progressista, que visa manter direitos conquistados há 200 anos. Faz 200 anos que estamos conquistando direitos civis, políticos e, mais recentemente, ambientais, e agora estão todos em risco por conta da onda conservadora, que não respeita minorias, meio ambiente nem trabalhador. Só respeita o capital. Então, tem uma Internacional Progressista sendo montada, e eu fui lá, me apresentei, passei um pouco do contexto latino-americano e brasileiro, em particular. Eu me coloquei à disposição do projeto, e agora fui convidado para compor o board mundial desse projeto.
Como o senhor acha que o PT vai reverter esse sentimento antipetista em parte do eleitor brasileiro? A rejeição ao longo da campanha foi muito clara.
Reconheço que existe antipetismo, mas não é novo, isso vem desde a fundação. Com tudo isso, o PT fez 45% dos votos no segundo turno. É um partido importante, que ganhou quatro eleições, que cometeu erros, dos quais eu sempre falo. A reforma política deveria ter sido uma providência fundamental desde o primeiro ano de governo. Era um sistema de muitas brechas para ações individuais ou sombreadas ou ilegais de todos os partidos.