“Garçom, no bar, todo o mundo é igual”. Quando compôs o sucesso Garçom, o saudoso Reginaldo Rossi (1943-2013), rei do brega, chorava a fossa de uma dor de amor. Parecia, no entanto, descrever a nova moda que pegou em BH após as eleições de 2018. A capital dos botecos ganhou este ano bares em que todo mundo é igual, pelo menos em matéria de política. A polarização dividiu a boemia e levou à inauguração de estabelecimentos com viés ideológico: Ursal, para quem é de esquerda, e O Destro, para quem é de direita.
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'Redes abrem fissura na centro-direita', diz pesquisadorNovo chanceler elogia EUA, Israel e países comandados pela extrema-direitaCelso Amorim defende frente ampla 'um pouco à direita' contra BolsonaroE, se a ideologia separa os bares, eles se aproximam em muitos, muitos pontos. Ambos pregam a liberdade e, pasmem, têm clientela que evita falar sobre política no boteco. Também contam com cervejas artesanais próprias – a summer ale Destra, à direita, e a blonde ale Lula Livre, à esquerda – e com semelhanças na gastronomia.
Em O Destro, clientes podem optar por “A Lula tá presa” (anéis de Lula e cogumelos shimeji). Já no Ursal, Lula Livre (carne acebolada com mandioca) é um dos tira-gostos mais pedidos, que, no combo, acompanha cerveja de mesmo nome e um pôster autografado do ex-presidente. O discurso da então presidente Dilma Rousseff (PT) sobre a mandioca também inspirou pratos nos dois estabelecimentos. “Estou saudando a mandioca.
O “Saudando a mandioca!”, linguiça de porco com mandiocas cozidas, é encontrado em O Destro. “O molhinho do ‘Saudando a mandioca’ está sensacional”, observa o engenheiro de Minas Kerim Savassi, de 28 anos, pela primeira vez no bar de direita. “Num bar de direita, você pode se expressar mais livremente. Mas, hoje, acabamos não conversando sobre política”, conta. Ligado ao pensamento mais à esquerda, o engenheiro Tales Lacerda, frequentador assíduo do Ursal, também acaba não conversando sobre política no bar temático. “Como todo mundo pensa igual, não precisa discutir política, só divertir”, diz.
ESQUERDA, VOLVER
O nome Ursal ficou conhecido depois que o então candidato à Presidência Cabo Daciolo (Patri) sugeriu, no primeiro debate presidencial de 2018, que o adversário Ciro Gomes (PDT) fizesse parte da chamada União das Repúblicas Socialistas da América Latina (Ursal). Desde janeiro, a sigla identifica o bar belo-horizontino que virou reduto de opositores ao presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Inaugurado na ressaca da eleição na Rua Dores do Indaiá, no Bairro Santa Tereza, tradicional reduto da boemia, na Região Leste de BH, ele foi criado para ser espaço de resistência ao governo do capitão reformado.
Desiludida com a vitória de Bolsonaro e depois de ser expulsa de grupos de família de WhatsApp, a corretora Ranara Feres, de 32 anos, lésbica e defensora do comunismo, teve o insight de que “a revolução é de bar em bar” e a única solução para atravessar o período bolsonarista seria abrir um boteco. “Ganhei um carro de herança e troquei pelo ponto”, conta Ranara.
“A gente estava com medo e pensamos num lugar em que nos sentíssemos seguros e pudéssemos ser felizes, num ambiente de liberdade”, diz. Apesar disso, neste mês, funcionários do estabelecimento foram agredidos por um vizinho do bar. Ranara atribui o episódio à intolerância política e ao conservadorismo. “Estamos vivendo um momento absurdo. O Brasil tem que beber mesmo”, afirma a vendedora Luísa Amaral, de 26 anos, frequentadora do Ursal. “Adoro o ambiente, as músicas. Me sinto livre aqui”, diz.
O Ursal foi aberto com a sócia Camila Cienfuegos, que se apresenta desta forma em homenagem a Camilo Cienfuegos, um dos líderes da Revolução Cubana. Camila carrega na pele a paixão pelo comunismo e tem tatuado o rosto de Cienfuegos, Che Guevara e Fidel Castro, além da foice e do martelo e a frase “Patria o muerte”, de Fidel. Assim como as tatuagens da proprietária, as paredes do bar são repletas de referências a Cuba.
CHARUTO
A simplicidade do ambiente em imóvel antigo remete à atmosfera de Havana.
Bandeiras de repúblicas comunistas e socialistas, estrela vermelha e fotos de Che Guevara compõem a decoração. E ele não é o único a ser homenageado no boteco, com pôster da pintora mexicana Frida Kahlo e do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez. Além de dar nome a pratos e cerveja “Lula Livre”, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aparece em vários cartazes do boteco.
O estabelecimento também já promoveu várias festas, como o 1º de Abril, Dia da Mentira, considerado o dia do “Bolsonday”, e a festa em comemoração à prisão do ex-presidente Michel Temer (MDB).
As sócias afirmam que os funcionários têm carteira assinada e que há uma política de participação de lucros na casa, mas reconhecem que a maior parte do faturamento está sendo destinada à abertura da segunda unidade. Elas também garantem que os proprietários do O Destro já foram vistos na Ursal, bebendo “Lula Livre”.
DIREITA, VOLVER
A direita vem ganhando espaço no país, desde o Palácio do Planato, com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PSL) às mesas de bar. Inaugurado em março, O Destro, na Rua Pium-í, no Bairro Sion, Zona Sul de BH, se apresenta como primeiro bar de direita do Brasil. “Em BH tem vários bares com referência à esquerda e criar um de direita surgiu como brincadeira”, afirma José Neto, um dos quatro sócios do estabelecimento.
Para o cliente desavisado, o local pode passar por um barzinho comum entre os tantos do reduto boêmio da Zona Sul, com pessoas bebendo em ambientes decorados com TVs de plasma, luz indireta e móveis no estilo “varanda gourmet”. Mas aos poucos aparecem as evidências de que não se trata somente de um bar.
A doutrina liberal também inspira promoções. Terça-feira é dia de “Imposto é Roubo”, quando a casa oferece chope e tira-gosto mais barato, descontando o valor dos tributos. Na quinta-feira, o bar dá 20% de desconto na carta de drinques, em referência à luta de Tiradentes contra a cobrança do quinto pela Coroa portuguesa. Sentados à direita de quem entra no bar, o casal Osvaldo Vaz, de 48, e Ruth Silva, de 52, escolheram mesa próxima à imagem do mártir e disseram estar animados com o momento político. “O país agora vai endireitar”, comenta Ruth.
Quadros com rostos de defensores do pensamento liberal e do Estado mínimo, como o ex-presidente norte-americano Ronald Reagan e a ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, ornam as paredes. O único homenageado vivo é o escritor Olavo de Carvalho, considerado guru de Bolsonaro. “Esse fenômeno da direita no Brasil é por causa do Olavo”, afirma. Se Bolsonaro vai virar quadro? ”O Bolsonaro é presidente há três meses, deixa ele fazer alguma coisa”, responde Neto, que ressalta que o bar não tem qualquer ligação partidária.
LIVROS
O livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, de Olavo, é um dos volumes para empréstimo na pequena biblioteca do boteco, que conta também com exemplar “A verdade sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, símbolo da repressão na ditadura militar. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro apontou ser esse seu livro de cabeceira.
Bem perto da biblioteca, um espaço de airsoft, simulação de tiro ao alvo. Por R$ 9,90, o cliente tem direito a seis tiros para num alvo de papel, onde o engenheiro de minas Kerim Savassi, de 29 anos, e Marcelo Ubaldo, de 28, ambos a favor do porte de armas e do liberalismo, se divertiam. “Viemos para conhecer, mas ser de direita não impede que a gente pule carnaval em bloco de esquerda, que são os melhores”, comenta Ubaldo.
A trilha sonora de O Destro também tem viés ideológico e as playlists privilegiam artistas que se posicionaram a favor do pensamento liberal, como Frank Sinatra, Johnny Cash e Lobão. Caetano Veloso e Chico Buarque são vetados. “Esse pessoal que puxa saco de ladrão não toca aqui”, diz o proprietário. Mas, segundo ele, todos os clientes são bem-vindos. “Todo mundo é livre para beber onde quiser”, diz.