O ex-presidente José Sarney é um dos últimos dos políticos de sua geração ainda “na ativa” e que tem engarrafamento na porta de casa por ocasião do seu aniversário. Em 24 de abril, quando completou 89 anos, não foi diferente. A política, assim, sem adjetivos, passou por lá. A nova política de Jair Bolsonaro, Sarney diz ainda não saber o que é. Porém, não tem dúvidas em relação aos movimentos do presidente: “Acho que ele está colocando todas as cartas na ameaça do caos (...) O presidente é quem deve se adaptar à cadeira e não a cadeira ao presidente”, diz, ao receber o Correio Braziliense para um café que resultou em quatro horas e 20 minutos de conversa, com uma hora e meia de entrevista gravada na última quarta-feira, acompanhada em parte por d. Marly e a filha, Roseana.
As palavras de Sarney soam como um alerta. Afinal, são a voz de quem enfrentou a ditadura Vargas, na UDN; viveu o período pré-64; o regime militar; participou do processo de redemocratização do país; e agora, avalia o sétimo governo da volta à democracia, torcendo por sua permanência. “Bolsonaro está no meio de um furacão. Pela primeira vez, estamos num momento em que é imprevisível. Fratura no Judiciário, no Legislativo e no Executivo. Todas essas estruturas estão trincadas”, diz ele. Com tanto tempo de janela, Sarney viu pedras virarem vidraças e vice-versa. Hoje, é só elogios a aliados que já foram adversários, caso de Lula, e ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Quanto às críticas que seu governo sofreu, responde que “ressentimento destrói a gente mesmo”. E apresenta números: quando deixou o cargo, a taxa de desemprego era de 2,9%, média de 4,3% nos cinco anos. Ele encerrou a corrida nuclear Brasil-Argentina, criou um programa de combate à Aids respeitado no mundo inteiro e, de quebra, ainda implantou o seguro-desemprego. Em sua trajetória, só faltava ver uma santificação. “Sempre vi os santos nos altares, terracota, madeira. Agora, vi uma Santa viva, Irmã Dulce, feita de amor e bondade. Deus foi sempre muito generoso comigo”. Confira os principais trechos.
O presidente Jair Bolsonaro pediu para o ministro Sérgio Moro não nomear a Ilana Szabó para o Conselho de Segurança Pública porque disse que ela era comunista. O senhor vê algum paralelo nesse “tirar comunistas do governo” com o que aconteceu em 1964?
Eu não quero fazer nenhum comentário sobre os meus sucessores. Cada um, presidente ou não, age de acordo com as circunstâncias que ele vive no momento. Eu vivia as minhas circunstâncias, não sei quais são as que vive o presidente Bolsonaro.
A gente vê o governo hoje muito desarticulado, até com os militares há ruídos. Como o senhor vê a participação deles no governo de hoje?
A minha experiência com militares sempre foi muito boa, encontrei sempre da parte deles o melhor procedimento. Tanto que a minha diretriz enquanto presidente foi: primeiro, a transição se fará com os militares e não contra os militares. Segundo, se eu sou comandante-chefe das Forças Armadas, o dever de todo comandante é zelar pelos seus subordinados, e eles são absolutamente disciplinados, leais e competentes. A participação deles no governo é sempre benéfica. De acordo com minha experiência, os militares são sempre uma voz sensata, competente e, ao mesmo tempo, ponderada. Falo do tempo em que vivi e convivi. Evidentemente, os excessos foram cometidos, e foram muitos, mas não se pode penalizar a instituição (militar) por esses excessos. As pessoas que foram responsáveis é que devem ser punidas, e não a instituição.
Como vê a relação do governo com o parlamento hoje?
A política é a arte do possível. Eu acho que tem que se lidar com realidades, e a realidade atual é que o presidente não tem maioria consolidada dentro do Congresso, nem nós temos hoje partidos, nem lideranças políticas, e vivemos uma crise muito grande.
O que o governo tem que fazer para sair disso?
O presidente Bolsonaro está no meio de um furacão. A crise internacional de recessão catalisou a crise brasileira. Estamos em um momento da história mundial em que presenciamos não um mundo de transformação, mas um mundo transformado. Temos que lidar com o choque das civilizações, o fim da civilização industrial, o começo da civilização e das comunicações digitais. Temos que lidar com a pós-verdade, com uma sociedade líquida, como bem fixou Zygmunt Bauman. Temos que compreender que estamos, no Brasil, muito atrasados para enfrentar essa crise que o mundo está vivendo. Então, o presidente Bolsonaro está tendo que enfrentar esses problemas, todos mundiais. Era o momento de nós termos um presidente que tivesse uma visão de todas essas modificações que vive o mundo, para poder enfrentá-las.
Poderia dar um exemplo?
Estamos com a morte da verdade, com um novo interlocutor da sociedade democrática, que se chama opinião pública, que hoje se manifesta por meio da rede social, principalmente. E as crises que o Brasil vive? O Brasil vive uma crise sem partidos, porque quando temos 60 partidos, entramos na lei do Montesquieu, que diz que quando temos muitos partidos, não se tem nenhum. Nós, também, estamos com uma classe política vivendo a crise da democracia representativa, isso é no mundo inteiro, os políticos estão demonizados. E a busca do povo é partir para uma democracia direta, sem representantes.
Mas isso não é um risco?
É um risco, porque os ingleses levaram 700 anos para construir esse sistema atual em que vivemos, da democracia representativa, dos Três Poderes, cada um controlando o outro. O Brasil acrescentou mais um poder, destruindo e desestabilizando todos os três: o Ministério Público.
Quando diz que esse é o momento em que precisávamos de um presidente que entendesse toda essa transformação, o presidente Bolsonaro não consegue identificar esses problemas?
Ele (Bolsonaro) está colocando todas as cartas na ameaça do caos. E isso, na realidade, aumenta os problemas que nós vivemos, porque desapareceram as utopias e nós não podemos matar a esperança. O que se vê é que todo dia se dá uma solução, uma visão escatológica do fim do mundo, em face da reforma da Previdência, sem se oferecer outras perspectivas de esperança. Quando se mata as utopias, é difícil que se sustentem as expectativas do país somente com uma reforma. Na realidade, a reforma é uma coisa que se fala permanentemente, porque vivemos em um mundo em transformação.
A reforma da Previdência não é necessária?
A reforma da Previdência é extremamente necessária, mas está também ao lado da reforma administrativa, da política, da tributária, da fiscal. Todas as cartas estão jogadas em um único objetivo, sem esquecer de que o presidente não tem maioria dentro do Congresso. Quando se fala em presidencialismo de coalizão, é melhor dizer presidencialismo sem partido. Vamos citar uma frase do Clinton, que é muito apropriada: “Os partidos no mundo atual não são importantes para a eleição, mas sem eles é impossível governar”. Ou seja, eles precisam estar estruturados, e se governa por meio de partidos, senão é uma situação anárquica e niilista que vamos viver.
Já estamos vivendo essa situação?
As perspectivas que temos e que estão sendo construídas nos levam a esperar, lá na frente, um impasse grande, que pode ser a pequeno, a médio ou a longo prazo, mas a verdade é que ele vai ocorrer. Por quê? Porque a Constituição de 1988 criou todas as condições para levarmos o Brasil a essa situação que estamos vivendo. Ela (a Constituição) é híbrida, é parlamentarista e presidencialista, deu ao Parlamento poderes executivos e deu ao Executivo poderes parlamentares, com as medidas provisórias que fez. E o Parlamento precisa aprovar todas as medidas que o Executivo tem que tomar. Na terça-feira, vimos, por exemplo, o ministro da Economia (Paulo Guedes) pedir ao Parlamento, desesperadamente, que aprovem um crédito de R$ 248 bilhões. Mas a nossa Constituição de 88 é excelente em dois pontos: a parte de direitos individuais, e a dos direitos sociais. Fora disso, é extremamente detalhista, de tal modo que nós já temos 105 emendas. Em tramitação, quando eu deixei a Presidência, tínhamos, no Congresso, 1.500 emendas constitucionais. Hoje em dia, é mais fácil se modificar a Constituição do que fazer uma lei, e a única Constituição que sobrevive no mundo há 200 anos é a americana, que foi feita por 55 pessoas e que é tão avarenta de emendas. E graças a Deus, à lucidez dos americanos, a primeira coisa que eles fizeram foi a primeira emenda, que é a da liberdade.
O que recomendaria para evitar o caos?
Pela primeira vez, estamos em um momento que é imprevisível, é preciso buscarmos e tirarmos uma medida mágica para resolver isso. Porque as coisas acontecem não porque vão acontecer, mas porque são levadas por um conjunto de fatores, que levam tempo para acontecer e chegam a essa situação, que nós vivemos atualmente, com a fratura no Poder Judiciário, no Poder Legislativo e no Poder Executivo.
Ou seja, não tem nada de pé?
Todas essas estruturas estão em um momento de abalo. Como os cristais, estão trincadas. Outra coisa é a crise da democracia que está se vivendo no mundo inteiro. Crise da democracia liberal.
E como é que o senhor vê essa crise?
Falou-se no fim dos anos 1980, no fim da história. Francis Fukuyama (filósofo) foi quem criou essa tese. Agora, estamos chegando à conclusão de que a história não chegou ao fim. Pensávamos que a democracia liberal ia ser a continuidade do mundo. Mas estamos vendo que não, ela precisa ser reformada, porque está levando a uma concentração de riqueza extraordinária. E não é mais o país rico, cada vez mais rico e os pobres mais pobres, não. É só os ricos cada vez mais ricos. A própria dinâmica do mundo levou a isso.
Por meio de quê?
Da automação, das novas tecnologias, a biotecnologia. E isso tudo nos leva à matança dos empregos. E nós então, os que têm analisado isso no mundo inteiro, eu procuro estar sempre atualizado, estamos vendo um mundo em que se vê a inteligência artificial substituindo o próprio homem. E quando analisamos isso, para pegar um exemplozinho pequeno, olhamos e a previdência é colocada dentro desse contexto. Um robô não paga Previdência e não se aposenta. Não é? E se nós verificarmos hoje, a crise da previdência não tem também só esses aspectos de que no futuro não vai pagar aposentados. Ela tem um aspecto do desemprego que existe. Porque temos hoje, no Brasil, 13 milhões de pessoas desempregadas. Temos mais 13 milhões que nunca ocuparam emprego e estão desocupadas. E temos mais 20 milhões que são da informalidade. Então, com uma quantidade dessas, é impossível administrar.
Qual seria o foco para enfrentar o problema?
É o do crescimento econômico. Sem crescimento, não resolvemos, qualquer reforma que seja feita não subsiste. No Plano Cruzado, tivemos superavit na previdência naquele tempo porque a nossa taxa de desemprego era de 2.9% de dezembro, de uma média dos cinco anos de 4.3%. Se tivéssemos hoje 30 milhões de pessoas contribuindo para a Previdência, que hoje estão fora (do mercado formal), não teríamos esse problema que temos. Então, é preciso que se analise dentro desse contexto. O problema maior hoje é o crescimento econômico, é o desemprego. Porque por aí é que está a fonte de todas essas coisas, além da destruição do sistema político brasileiro que, hoje, ninguém sabe o que é, e o caos que nós vivemos.
Como avalia esse sistema político?
Nem avalio. Não dá para avaliar porque não existe. Ele foi destroçado.
Destroçado por reformas políticas?
Pela Constituição de 1988. As reformas corrigiram os erros que foram feitos na Constituição de 88.
Qual é o maior erro da Constituição de 1988?
Nenhuma Constituição é elaborada sem um projeto antecipado. Na nossa resolveu se fazer um projeto na bacia das almas. Todo mundo ia lá, e queria tomar um pedaço corporativista. Então, criou-se uma Constituição corporativista.
Então, a culpa é das corporações hoje? Ou elas são parte do problema maior?
É, ela é corporativista, ao mesmo tempo ela, não pegou, destruiu o Congresso com uma grande formação dos partidos. híbrida, criou essas medidas provisórias. Até hoje, estamos tentando corrigir a Constituição de 1988. E ainda temos mais de 50 dispositivos na Constituição que demandam serem regulamentados.
O senhor aceitaria fazer uma nova Constituinte?
Os ingleses não têm Constituição, mas têm o seu Bill of Rights. Há poucos dias, estava lendo um livro sobre a formação da Constituição americana. Até ela foi feita num projeto básico porque, na realidade, foi baseada nas notas que o Madison tinha levado para serem discutidas. Tem uma história, o Ulysses (Guimarães, ex-presidente da Câmara) chegou e disse: “Olha, presidente, eu quero lhe comunicar que passaram 10 milhões de pessoas pelo Congresso para fazermos a Constituição, é uma grande coisa que fizemos”. E, então, eu disse a ele: “Ô Ulysses, a Constituição que mais dura no mundo, que tem mais de 200 anos, é a americana. Foi feita por 55 pessoas, com um pacto de ninguém dizer ao outro qualquer coisa, nem em casa, de que ele estava tratando. E ela tem mais de 200 anos. E foi a base de se criar uma nação que hoje é o país líder do mundo”.
O senhor disse que a Constituição tornaria o país ingovernável...
Sim, a primeira coisa que ela fez: tirou 20% do orçamento da União. Agora, temos esses problemas todos que chegaram até hoje. Então, isso leva tempo, me senti no dever de advertir que isso ia acontecer. Quando nós fizemos essa Constituição, destruímos os estados também. Porque, hoje, nós não temos mais Federação, todos os estados estão quebrados.
Mas a culpa é só da Constituição? E os planos econômicos, ajudaram ou atrapalharam?
Muitos ajudaram o país. O Plano Cruzado foi a iniciativa de maior coragem que já teve. Eu ouvi do Brizola que eu tinha sido o homem de maior coragem porque havia rompido com a ortodoxia econômica e procurado um outro caminho. O Plano Cruzado deu estabilidade, nos deu a menor taxa de desemprego da história do Brasil até hoje. O Plano Cruzado nos permitiu fazer a Constituição porque sem ele nós não tínhamos feito a Constituição. Ele permitiu que eu não fosse deposto, proporcionou estabilidade para o país e ele nos permitiu chegar ao Plano Real. Porque todos os outros planos até chegarmos ao Plano Real foram resultados da coragem inicial de nós optarmos por uma forma fora da recessão, que era o modelo do FMI. Se tivesse feito a recessão, eu teria caído. Teria sido deposto. Não tinha condições de permanecer, porque iria levar ao desemprego, à paralisação do país, nós atravessamos naquele período a tudo isso.
Com toda a turbulência que teve, não é?
Com toda a turbulência que teve. Com tudo isso, todos os problemas que vivemos, a morte do Tancredo, mais a transição democrática, saindo do regime militar para a plena democracia, nós conseguimos atravessar esse período todo. Fala-se hoje que foi um período de inflação muito alta, eu digo “não foi”. Não se pode comparar inflação com correção monetária com inflação sem correção monetária. Se calcula o PIB dos países em dólar. Se nós calcularmos a inflação do meu governo em dólar, eu mandei a consultoria Tendências fazer o cálculo. A inflação do meu período foi alta, foi 17%, de todo o período. Então, isso aí (de inflação alta) é uma leitura porque não tive apoio político, fiquei sem partido político, fiquei jogado às feras. E, até hoje, eu sou vítima da pós-verdade, quer dizer, aquela mentira que se torna verdade. Por exemplo, para citar uma, todo mundo diz que eu lutei para ter cinco anos de governo e que dei rádios. Fiz um esforço tremendo para fazer isso, quando, na realidade, eu tinha seis anos e abdiquei de um ano. Passei, como todo mundo acredita, é o que hoje se chama pós-verdade. Todo mundo acredita que eu fiz tudo para não ter um ano. Os outros governos, depois de mim, distribuíram 10 vezes mais rádio do eu. Mas eu não precisava disso, eu tinha uma grande maioria dentro do Congresso.
Vivemos uma situação de desemprego, o país parando, os estudantes estão indo às ruas. Bolsonaro pode acabar deposto?
O presidente, hoje, tem que se legitimar das 6h até as 6h do dia seguinte. Porque há uma força permanente dos problemas que nós temos, tão complexos como estão os do Brasil hoje, que levam os presidentes a serem responsabilizados por tudo e que termina no que nós temos visto. A Constituição de 1988, além de ter dado essa estabilidade, que é muito boa, dos problemas sociais, nos deu três impeachments, dois que chegaram ao fim, o do Collor e da Dilma, e o terceiro, do Temer, que não chegou ao fim, mas que o pedido foi feito. Então, acho que uma solução, a primeira e mais simples, para evitar esse problema do presidente ter que viver essa pressão permanente, seria adotarmos o parlamentarismo. É um governo de primeiro-ministro, quando temos uma crise de gravidade paroxística, cai o primeiro-ministro, não leva a uma crise institucional da República e do presidente. Eu acho que o Bolsonaro está sendo vítima de uma leitura errada que ele fez. Ele achou que, quando ganhasse a eleição, superando essa visão internacional de que o Brasil era um país de esquerdista, porque estava alinhado com a Venezuela, Cuba e outros países socialistas, iria receber dos americanos e da economia internacional um apoio muito grande, que imediatamente atrairia para o Brasil investimentos e nós iríamos crescer. Na realidade, de certo modo, acho que não tem ninguém mais decepcionado com isso do que ele, porque foi logo visitar o Trump mostrando essa visão. E, na realidade,o Trump não deu nada. A visão do Trump é nacionalista, América acima de tudo.
Foi ingenuidade do presidente achar que isso aconteceria?
Eu acho que foi. Quando, na realidade, hoje, o que nós vemos é que o primeiro importador do Brasil é a China. E que a China está marchando para ser, dentro de 10 anos, o primeiro país do mundo. Inclusive, o general Mourão com uma prova de lucidez, está indo para lá. Ele sempre foi tido no Exército como um homem de grande capacidade, sempre teve grandes missões, sobretudo, na área internacional.
Como vê esse contraponto entre o vice e o presidente?
No Brasil, há sempre uma tendência de querer colocar o vice-presidente como um adversário do presidente. Na realidade, eu fui vice e sei o que é isso. Tanto que a minha primeira providência foi chamar o Tancredo e dizer que eu queria ser um vice-presidente fraco de um presidente forte. Citei a ele o caso do Mondale, que, quando foi vice do Carter, estabeleceu uma regra de convivência, e quando mostrei a ele o documento, Tancredo, com aquela amizade pessoal que nós tínhamos, ele disse: “Não me mostra documento nenhum, eu sei que nós vamos nos entender muito bem”.
Quando o senhor fala nesse mundo transformado, o senhor acha que a oposição aqui tem agido corretamente?
Não há oposição. Nós estamos em um momento no Brasil em que não temos nada. Até a oposição não existe.
Sem partidos, sem oposição... Vamos ficar no deus-dará?
Por isso é que eu disse que o nosso presidente está vivendo no olho do furacão.
Quando o senhor vê como alternativa o parlamentarismo, isso demora. O país aguenta?
Sim, ninguém vai acabar. O país vai viver suas vicissitudes, suas dificuldades e vai encontrar seu caminho. Porque é um grande país, um extraordinário país. Reconheço que estamos muito atrasados em termos de ciência e tecnologia. Está se renegando a um segundo plano a ciência e a tecnologia. No meu tempo, dei uma importância muito grande a isso, visitei o acelerador de partículas do Fermilab, no qual se estuda as partículas de altas energias. Montamos um pequeno acelerador de partículas, fabricamos a fibra ótica. Foi no meu tempo que enriquecemos o urânio, coisa que a Coreia do Norte e o Irã estão brigando com os Estados Unidos e criando uma crise mundial. Fizemos tranquilamente isso no Brasil. Em toda a história da Capes, nunca tinha tido o número de bolsas que demos para a formação de cientistas brasileiros no exterior. Se não caminharmos nessa direção, vamos ficar sempre muito atrasados em relação ao mundo. Hoje, a gente pode ver que o erro que nós tivemos em relação ao Brasil foi um problema de educação. Nós demos prioridade à economia, primeiro à criação do bolo. E, depois, dividir o bolo. Hoje sabemos que, para criar esse bolo, temos que ter um desenvolvimento tecnológico e educacional. Os países que progrediram na Ásia marcharam para a educação. Investiram na educação. A educação criou a prosperidade econômica e, aí, então, se dividiu o bolo. Nós entramos no caminho inverso: Queremos primeiro criar o bolo. Resultado: é a crise nacional que temos, que é a educacional. Cada vez mais atrasados, sujeitos a uma colonização cultural e isso vai ter consequências grandes.
E o governo ainda pensa em bloquear os recursos...
Isso são acidentes que estão ocorrendo resultados desse desequilíbrio orçamentário e a estagnação que o país vive.
O senhor tem dois filhos políticos. Roseana foi governadora, Zequinha Sarney foi ministro, hoje é secretário. Como avalia o comportamento dos filhos de Bolsonaro?
É uma questão que não desejo abordar. Já que não critico meus presidentes e meus sucessores nem pelas atitudes nem pelo seu governo, não devo tratar desse assunto que envolve família.
E as declarações de Olavo de Carvalho, que às vezes usa palavras de calão, se mete no governo, o presidente vai e apoia ele, como o senhor vê isso?
Eu confesso que antes do governo Bolsonaro eu não conhecia o Olavo de Carvalho. Nem conheço as suas ideias. Nunca li os livros dele.
Nem está fazendo falta?
Eu tenho lido resumos das suas ideias. Ele deve ser um homem inteligente pela influência que exerce no governo.
A concentração dessas pautas de costumes é tão importante a ponto de renegar assuntos como educação?
Não, eu acho que nós fixamos em um único ponto como se a salvação nacional fosse essa. A reforma da Previdência. Quando, na realidade, nós temos um universo de problemas aí, o país é muito complexo para ficar só na Previdência. A Previdência é uma consequência, não é uma causa. É um efeito.
Como vê esse decreto que ampliou o porte de arma no país?
Eu apoiei o desarmamento. Enquanto presidente do Senado, criei a comissão que resultou no Estatuto do Desarmamento.
Mas já foi armado para uma reunião...
(silêncio) E me arrependo. Foi numa reunião do PDS, na qual estava ameaçado de ser destituído à tapa. E doía muito. Física e moralmente.
Mas não deu um tiro, não é?
Não. Felizmente todos, até os meus inimigos, tiveram bom senso. Não me deram tapa nem eu não dei tiro. Rezas da minha mãe.
Como o senhor gostaria de ser julgado?
Daqui a 100 anos com o modo que vivemos hoje, ninguém julga ninguém. Cristo já dizia, nós não devemos julgar para não sermos julgados. Eu cumpri com o meu dever e dei uma contribuição importante para a história do Brasil. Só eu sei o que foi a transição democrática. Se não fosse o meu temperamento e a minha experiência de muitos anos. Sou o parlamentar mais antigo da história da República, eu passei 52 anos no parlamento. Quarenta como senador e 12 como deputado. Além de ter sido governador e presidente da República, então, mais do que tudo isso, tem o fato de ter uma vocação intelectual. Se eu tivesse que escolher ao nascer, eu escolheria e ficaria só nessa vocação. A política, já dizia o Napoleão, é o destino. A literatura é a vocação. Eu já escrevi 120 títulos, com 168 edições traduzidas em 12 línguas. Isso me ajudou muito dentro da política. É difícil ser político e, ao mesmo tempo, escritor e intelectual, porque a política, como eu disse, lida com a realidade e a literatura com a ficção.
O senhor falaria sobre o Lula? A prisão…
Eu lamento profundamente o que acontece com o presidente Lula e o que aconteceu recentemente com o presidente Temer, ambos, eu acho, estão sendo vítimas de injustiças.
O superpoder do MP provocou isto?
Ocorreu aquilo que o ministro falou, nós politizarmos a Justiça e judicializamos a política.
Como o senhor vê essas dificuldades que o MDB está passando?
Nós tivemos o Geddel com apartamento de dinheiro... Todas essas coisas estão dentro desse contexto que analisamos.
O governador Ibaneis sonha ser o presidente do MDB. Ele consegue?
O Ibaneis é um homem de grandes virtudes. E acho que ao mesmo tempo é uma prova de patriotismo dele, de espírito público, querer dirigir o MDB nesse momento. Na realidade, todos estão fugindo de querer entrar na política.
Não será difícil para ele?
Na política tudo é difícil. Nada é fácil. Até ser político.
O MDB tem futuro na atual conjuntura?
Cada partido nasce e vive dentro de determinadas circunstâncias e com uma determinada missão. Eu vivi muito tempo isso na UDN, quando nós enfrentamos a ditadura Vargas e saímos para ser o grande partido que fomos. Vi isso também na trajetória do MDB quando ele começou. E ambos os partidos esgotaram a sua missão, porque nasceram sob determinado signo. O partido tem que se reinventar.
Quem está na crista da onda é o DEM.
Todos os partidos cumpriram sua missão, é um outro tempo.
Um tempo em que a opinião pública, como disse o senhor, domina...
Nós estamos em um tempo, como diz o Bauman, da sociedade líquida (risos). As coisas se transformam muito rapidamente. Por isso, que se liquidificam.
O senhor sempre muito crítico da estrutura eleitoral...
Discuto isso desde 1972, apresentei projeto no Congresso sobre o voto distrital, o voto distrital misto, o parlamentarismo. Mas tudo isso é muito difícil, porque quem está no governo, e foi ao poder por determinadas circunstâncias, jamais abdica. Só conheço uma pessoa que tenha abdicado de poder no governo: eu,quando acabei com a conta de movimento do Banco do Brasil, que era o poder de todos os presidentes, até então. Era uma conta sem-fim que se sacava, jogava, sem precisar depositar. Também, como já disse, abdiquei de um ano de mandato. Tomei essa decisão baseado no Dutra, que foi eleito com a Constituição de 1937, seis anos de mandato. Quando teve a Constituinte de 45, ele combinou com a Constituinte e abdicou de um ano. Eu julguei que ia fazer a mesma coisa, só que o Dutra eles compreenderam e a Constituinte aceitou. Em 1988, não, porque todo mundo queria ser candidato o mais rápido o possível. Tinham medo da Constituinte, não vou citar nomes, todos já faleceram, mas foi isso, tanto que a Constituinte foi feita com os olhos no retrovisor, eles colocaram os olhos no passado, e queriam imediatamente ocupar o governo.
O senhor guarda mágoas desse período?
Eu acho que a mágoa é um sentimento que destrói a gente. Eu que cheguei à Presidência, não posso ter mágoa, o criador foi muito generoso comigo. Nasci numa casa de 50m² e de chão batido.
A propósito, e o Maranhão, como está hoje?
Vai bem, obrigado.
O que dizer de FHC?
É um homem muito inteligente. Todo presidente faz o que pode fazer e vive suas circunstâncias. E sempre quer fazer o melhor. Não acredito que alguém que vire presidente queira fazer o pior. Acontece é que a cadeira da Presidência sempre é maior que o presidente, o presidente que tem que se adaptar à cadeira, e não a cadeira ao presidente. Isso vale pra todos, eu acho que o Fernando Henrique fez o que ele podia fazer no momento dele e eu o respeito muito. Acho que ele é um homem muito capaz e que ele procurou fazer sempre o melhor.
O presidente Lula, na última entrevista que deu, disse que ele deveria ter sido mais incisivo com a presidente Dilma na hora de cobrar mudanças na política econômica, em 2015, 2016. Foi um erro?
O presidente Lula ele teve uma importância muito grande na história do Brasil, porque nós comemoramos os 100 anos de República, começamos a República com os militares, depois com os barões do café, depois os bacharéis. Todo mundo teve oportunidade, o mundo inteiro lutou por esses ideais, terminamos com um operário no poder, o que é uma coisa extraordinária. Não há nesse país quem não tenha tido oportunidade de chegar à Presidência e o Lula chegou sendo o homem que alargou os direitos sociais. O país ficou mais justo com o Lula.
O maior legado dele é esse?
É esse mesmo, é uma coisa extraordinária para o Brasil. Nós começamos todo o século XIX lutando entre duas palavras, revolta e revolução, a revolta como um fenômeno individual e a revolução como um fenômeno coletivo. Chegamos ao operário, fomos do capital ao trabalho sem derramamento de sangue, sem lutas fratricidas. O que no mundo inteiro foi feito com muito derramamento de sangue, aqui nós fizemos dentro de um sistema de entendimento e de diálogo que é muito do brasileiro, do que nos caracteriza, essa capacidade de dialogar e compreender o outro.
Que conselho o senhor daria aos políticos?
Procurem ter uma boa formação. É preciso ter cultura e isso abrange todas as áreas de conhecimento. E como toda cultura tem que ter dente de serra. Uns mais altos, outros mais baixinhos. De culinária, não sei nada. Sou adepto do provérbio chinês: comer pouco, dormir muito e não discutir com mulher.