Brasília – A voz pausada, o discurso calmo e o direcionamento de qualquer palavra para falar de Deus mostram bem a conduta de dom Walmor Oliveira de Azevedo na sua função: a de um pastor que leva ovelhas em um caminho tortuoso e com o clima extremamente instável.
A metáfora aponta para a responsabilidade que ele assumiu há algumas semanas, ao ser escolhido como novo presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), organização antes conduzida por dom Sérgio da Rocha, arcebispo de Brasília. Dom Walmor tem a consciência da polarização que toma conta da Igreja Católica, do Brasil e do mundo. Mesmo assim, não perde o controle.
Como não se enraiveceu com críticas, que o colocam às vezes como conservador, às vezes como liberal, Dom Walmor, arcebispo de Belo Horizonte, nem se dá ao trabalho de se definir. Mas moderado seria um conceito bem servido. “Os irmãos bispos me escolheram por confiarem em mim, por valorizarem minha experiência e meu conhecimento”, diz, sem vaidade aparente.
Ele esteve em Brasília na semana passada para participar do Conselho Episcopal Pastoral, órgão que reúne comissões responsáveis por colocar em prática as diretrizes decididas na 57ª Assembleia Geral da CNBB (que ocorreu em maio, em Aparecida-SP, e elegeu Dom Walmor).
Aproveitou para se reunir, ao lado da diretoria, com o presidente Jair Bolsonaro. E, claro, o assunto das reformas – principalmente a previdenciária – surgiu na conversa.
“A CNBB, como Igreja, não se coloca contra reformas. As reformas precisam existir: previdenciária, tributária, fiscal, no âmbito do governo, no próprio Judiciário”, definiu dom Walmor.
O que ele e os outros membros da CNBB deixaram claro para Bolsonaro é que nenhuma das reformas deve sacrificar os mais pobres. Como conseguir isso? “O único caminho é o diálogo”, ensina o baiano de 65 anos, doutor em teologia bíblica e mestre em ciências bíblicas, e que tem como lema episcopal uma mensagem forte: “Para cuidar os feridos no coração”. “Eu escolhi esse lema por compreender o meu ministério, como padre, que a humanidade tem muito sofrimento, muita dor, e todo o mundo procura sua cura. E a cura está em Cristo”. Confira os principais trechos da entrevista com o religioso.
O senhor declarou que orou para não ter o desejo de se eleger presidente da CNBB, durante a escolha. Agora, tem um trabalho árduo até 2023. Com essa oração em mente e muitas outras que o senhor fez desde então, por que o senhor acha que foi escolhido para a função?
Com muita simplicidade de coração, sem nenhum sentido de vaidade, considere que os irmãos bispos me escolheram por confiarem em mim, por conhecerem a minha seriedade no trabalho missionário de igreja, por valorizarem minha experiência e meu conhecimento, e o modo como, naturalmente, eu conduzo, como primeiro servidor, a Arquidiocese de Belo Horizonte. Ao considerarem esse conjunto e este momento que nós estamos vivendo, eu estou convencido que, por essas razões, eles escolheram me colocar nessa enorme responsabilidade. Eu não a desenvolvo sozinho, mas colegialmente, com todos os bispos do Brasil, a partir do trabalho que certamente é o mais importante: aquele que se faz em cada diocese, em cada paróquia, em cada comunidade e, por conseguinte, que nós precisamos a partir daqui da CNBB.
O senhor participou agora do Conselho Episcopal Pastoral, a primeira reunião com a nova direção. Já há algo de concreto de planos da CNBB?
Nós trabalhamos aqui, sobretudo, ouvindo e abrindo pistas e caminhos para as 12 comissões episcopais e pastoral. O horizonte para esse trabalho, no sentido de fazer um plano quadrienal de nossas atividades, está nas diretrizes gerais da ação evangelizadora para Igreja no Brasil. Foi exatamente o tema central e mais importante lá na 57ª Assembleia Geral, que realizamos de 1º a 10 de maio, em Aparecida, no Santuário Nacional. Agora, tudo o que discutimos, tudo o que indicamos e tudo o que foi já visto pelas comissões, tudo deverá encaminhar para cada comissão realizar o seu projeto. O que vamos dar mais um passo, em junho, é quando teremos a reunião de mais um órgão, depois da Assembleia Geral, o mais importante, que é o Conselho Permanente, trazendo aqui os bispos presidentes das 12 comissões episcopais, comissões especiais e, sobretudo, a importante presença dos presidentes dos 18 regionais e seus representantes, para delinearmos concretamente o que vamos fazer no horizonte, no grande objetivo geral, que é evangelizar o Brasil, cada vez mais, para formar discípulos à luz da palavra de Deus, anunciando o Evangelho, à luz da opção preferencial pelos pobres, formando discípulos e cuidando da casa do Senhor. Esse é o grande horizonte do nosso trabalho.
O senhor falou da opção preferencial pelos pobres, algo muito trabalhado pela teologia da libertação, que é um movimento relacionado à esquerda. Mas sua fala não é ideológica, é?
Quando nós falamos da opção preferencial pelos pobres, não estamos falando como sociólogos, nem como aqueles que, nos segmentos da sociedade, por exemplo, governamentais, em tarefas específicas. Nós estamos falando de algo que é intrínseco à fé: o amor aos mais pobres, a defesa daqueles que são mais frágeis, a luta e o trabalho para que a sociedade seja mais justa, fraterna e solidária. Se alguém disser – e a palavra de Deus é muito clara nisso – que crê, mas não faz nada por aquele que precisa, então, a sua fé não é autêntica.
O senhor assume a presidência da CNBB em uma época muito difícil no Brasil, seja na religião, seja na política, seja na sociedade, de dicotomias: esquerda/direita, liberal/conservador, progressista/tradicionalista. Como o senhor vê isso, essa divisão tanto na sociedade como dentro da própria Igreja Católica?
O nosso mundo é um mundo de grandes e velozes mudanças culturais. Por isso mesmo, não estamos conseguindo como mundo e também como sociedade brasileira dar conta de administrar, na velocidade e na complexidade, todas essas mudanças. Entendo que é daí que vêm as polarizações. Não se dá conta de ver o que mudou, o que é preciso dar como nova resposta, o que é preciso, de fato, resgatar dos valores que às vezes foram negociados, perdidos ou deles distanciados. E isso afeta internamente a Igreja também, que está no coração do mundo, como afeta instituições governamentais e da sociedade, afeta a família, afeta cada cidadão. O caminho, pensando na sociedade plural, é o caminho do diálogo. O caminho, portanto, de qualquer tipo de polarização, é um desserviço à sociedade, é um distanciamento da verdade e é uma impossibilidade de construção daquilo que é preciso. Por isso, é importante o diálogo. E o diálogo para nós, cristãos, tem sua fonte e seu embasamento no Evangelho de Jesus Cristo. Por isso, gosto sempre de me referir que nós temos que pautar a nossa vida em sentimentos, em escolhas, em modos de ser e nos relacionar no horizonte do Evangelho de Mateus, capítulo 5 a 7: o Sermão da Montanha. Aí, o diálogo não é um diálogo demagógico, não é um diálogo interesseiro, mas é um diálogo marcado pela força do amor. Esse é o caminho. E eu compreendo que a Igreja está no mundo para isso. Agora, de modo muito mais especial. E como Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, essa é a nossa grande tarefa, sobretudo fecundando e fomentando entre nós, os bispos, a colegialidade afetiva, que é um coração da CNBB. As nossas diferenças se enriquecendo para ser uma grande força e nessa força missionária ajudarmos a proclamar a palavra de Deus, a anunciar o Reino de Deus. E, assim, também ajudar a sociedade por nosso testemunho a encontrar esse caminho. Por isso, somos chamados fortemente ao diálogo. Qualquer instituição, qualquer grupo, qualquer segmento, qualquer pessoa, se quiser contribuir para uma sociedade mais justa e solidária, tem que dialogar. Como nós, na nossa experiência de fé cristã, temos essa compreensão porque Deus dialoga conosco. Ele é Deus, mas dialoga com a humanidade. E dialoga de uma maneira tão profunda que envia o seu próprio filho, Jesus Cristo. Ele assume nossa condição, igual a nós em tudo, exceto no pecado, para exatamente estabelecer o diálogo entre Deus e a humanidade. Portanto, o caminho é o diálogo. Nós podemos, com a força do diálogo, fazer um novo momento na história no Brasil, um novo momento na nossa cultura brasileira. Inclusive valorizando princípios e referências muito fortes na nossa cultura brasileira, que com o tempo perdemos o contato.
Por falar em diálogo, havia também a expectativa de uma conversa com o presidente Jair Bolsonaro. Como será essa conversa?
Exatamente hoje (essa entrevista foi realizada na última quarta-feira, 29 de maio), os quatro membros da presidência (da CNBB) — o presidente, os dois vices (dom Jaime Spengler e dom Mário Antônio da Silva) e também o secretário-geral (dom Joel Portella Amado), tivemos uma visita muito cordial com o presidente Bolsonaro, na qual fomos muito bem recebidos e dialogamos de maneira muito sincera, honesta. Um diálogo cordial, compreendendo que a Igreja está no coração do mundo, como Igreja servidora do Evangelho, para ajudar a defender os princípios que são irrenunciáveis e fundamentais para a sociedade avançar. Com as nossas muitas preocupações, sobretudo com aqueles que sofrem mais, aqueles que têm menos condições. Convencidos de que precisamos de muitas reformas e, sobretudo, uma compreensão lúcida para que as reformas possam ser justas, possam, de fato, empurrar o Brasil na direção que ele precisa ir e, de modo especial, levando em conta aqueles que precisam mais de nós.
Vocês falaram especificamente sobre a reforma da Previdência?
Na verdade, nós falamos, sobretudo, da relação igreja/governo, como é importante falar da relação entre a igreja e outros segmentos importantes da sociedade, nesse diálogo, no qual a igreja tem, pode e deve trazer a sua grande contribuição na força moral do Evangelho, na defesa de valores, na proposta de valores que possam reordenar o caminho da vida. Nós estamos abertos. O presidente se colocou, com alegria, aberto para o diálogo. Nós queremos dialogar em uma sociedade que é complexa, que é muito exigente. Mas, como disse há pouco, o único caminho é o diálogo, para que pela força do diálogo, à luz de valores que professamos, consigamos a lucidez necessária para encontrar o caminho para dizer o sim, para dizer o não, para escolher adequadamente.
Mas pouco antes da eleição do senhor, a CNBB, de certa forma, se colocou contra a reforma da Previdência, por afetar os mais pobres. A CNBB tem uma posição oficial agora, depois dessa conversa?
A CNBB, como Igreja, não se coloca contra reformas. As reformas precisam existir: previdenciária, tributária, fiscal, no âmbito do governo, no próprio Judiciário. Muitas reformas precisam acontecer. Aliás, a nossa vida só vai adiante quando nós nos dispomos a fazer reformas para dar as respostas aos novos tempos. O que compartilhamos com grande preocupação é exatamente essa (de afetar os mais pobres) e tem que ser um conceito na sociedade: fazer reformas para que a sociedade seja justa, fraterna e solidária, e nunca se penalize aqueles que são mais pobres. As reformas são necessárias, por isso, precisamos de muito diálogo, de muita luz do Espírito Santo de Deus, para que o passo dado seja um passo para o bem do conjunto da sociedade, de uma sociedade assentada sobre valores como são os valores cristãos e que são fundamentais e determinantes para um mundo novo.
Mas algumas reformas dentro da própria Igreja Católica são mais delicadas como a questão do aborto ou da homossexualidade. Claro, há conceitos dentro da instituição que não serão mudadas, como a defesa da vida...
As reformas são necessárias e elas têm um caminho para serem feitas, porém, elas não podem sacrificar valores que são inegociáveis. A Igreja tem que avançar. Ela se reforma internamente, por isso, a gente diz que a Igreja está sempre se reformando. Mas ela não pode ser reformar, assim como sociedade não pode ser reformar, como as instâncias não podem ser reformadas abrindo mão de princípios que são inegociáveis. Por exemplo, a vida. Nós temos que defender em todas as suas etapas, desde a concepção até o momento último da morte natural. Portanto, alguém poderia dizer – e estaria na nossa contramão: ‘Vamos reformar, abrindo mão de valores que são inegociáveis’. Não. Até porque, na medida em que nós não abrimos mão de valores inegociáveis, é que nós encontraremos a luz e o caminho para a reforma que se precisa, com as respostas adequadas e que são exigidas.
Por outro lado, o papa Francisco fala muito de um novo tipo de Igreja, com os braços abertos. Isso mexe com a situação, por exemplo, dos homossexuais, que querem fazer parte da Igreja Católica. Como isso é visto dentro da CNBB?
A Igreja é uma casa de portas abertas para todos os seus filhos e filhas, desde aquele que está fortalecido, aquele que tem condições de uma resposta mais próxima do que o Evangelho nos pede, até aqueles que estão caídos. Por isso, o papa Francisco usa uma expressão muito bonita: a Igreja é um hospital de campanha. Ela tem que se debruçar sobre todas as pessoas. Ao debruçar-se sobre as pessoas, é como ele mesmo diz: ‘Prefiro uma Igreja enlameada do que limpa e distante das pessoas’. A única coisa importante que nunca vai acontecer é a gente abrir mão dos valores, do ideal de santidade, de uma vida adequada, justa, na moralidade. Portanto, não se descrimina absolutamente a ninguém, mas nós estamos também nos debruçando sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre aqueles que estão caídos pelo caminho. Mas nós não abrimos mão dos nossos valores, até porque é na força desses valores que nós nos resgatamos e encontramos a sabedoria para o caminho. Por isso, abrir mão de valores inegociáveis, de princípios morais fundamentais, não significa outra coisa senão o verdadeiro fracasso.
Sobre a questão dos abusos por parte de padres e bispos, o papa Francisco está sendo cada vez mais duro. A CNBB vai seguir o mesmo caminho?
Quando se trata de abuso de menores – embora, ao se considerar a porcentagem na sociedade em relação aos consagrados, ela é bem menor, quase insignificante diante de tudo o que tem acontecido, lamentavelmente, e é um cuidado que o conjunto da sociedade precisa tomar e olhar –, para nós, na Igreja, em sintonia profunda com o papa Francisco, é tolerância zero. Por isso, nós estamos em um caminho muito importante, com trabalho acelerado de uma comissão para tratar da tutela de menores, exatamente para orientar procedimentos jurídicos e canônicos, de como fazer em cada diocese, o passo a passo. E, ao mesmo tempo, tratando, ouvindo e apoiando vítimas, para que a Justiça seja feita e a recuperação e o alento às pessoas que sofreram – e que, para nós, é lamentável – possam ter, de nossa parte, uma presença solidária. É uma aposta de recompôr vidas e corações, que é uma tarefa muito importante, porque para a Igreja nada é mais importante, na sua missão, do que cada pessoa, cada homem, cada mulher, a humanidade como um todo. Por isso, tolerância zero. E nós estamos trabalhando. Esperamos concluir um trabalho acelerado, da mais alta importância, para que nós possamos agir em um horizonte das orientações e das determinações que nos vêm do papa Francisco.